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As Navegações e o Humanismo
«O historiador suíço Jacob Burckard, na sua monumental obra «Die Kultur der Renaissance in Italien», defendia em 1860 que com o Renascimento Clássico nas cidades italianas, entre os séculos XV e XVI, se abrira uma nova Idade na História das sociedades humanas. Aquele historiador associava ao Renascimento uma autêntica revolução nas formas de sociabilidade, de pensar, de conceber a arte, de agir e de ser, acrescentando que o pano de fundo dessa transformação era o «regresso» à Antiguidade Clássica, cujo brilhantismo fora ofuscado pela «noite» da Idade Média. As ideias de Burckard rapidamente ganharam defensores. Muitos dos seus seguidores começaram, então, a estudar o movimento cultural que, em traços largos, acompanhou o renascer da cultura clássica: o Humanismo.
Contudo, na discussão que se seguiu, não foi possível estabelecer de forma consensual um conceito de «Humanismo» e «humanista», na sua dimensão sociológica, cronológica e cultural. De certa forma compreendem-se as razões de tais dificuldades, pois é necessário ter presente que, afinal, a Idade Média nunca perdeu em definitivo o contacto com a cultura clássica, tendo inclusive assistido a dois «Renascimentos»:
- entre os séculos VIII-IX (Renascimento «carolíngio»);
- e outro de contornos mais vastos, nos séculos XII-XIII (acompanhando o renascimento urbano, o aparecimento das universidades, a tradução de inúmeras obras clássicas a partir de Toledo).
No entanto, nos séculos XV e XVI, vai assistir-se a um redobrado interesse pela cultura clássica, com entusiasmo acentuado nas ricas cidades mercantis italianas. De facto, o Humanismo Renascentista foi operando uma viragem mental, muitas vezes em oposição declarada ao período que lhe antecedeu (Idade Média), apresentando como alternativa o exemplo do mundo grego-latino. Assim, enquanto copiavam e davam a conhecer os autores antigos, os humanistas aplicavam novas técnicas filológicas, apuravam o seu vocabulário clássico e desenvolviam disciplinas doutas como a gramática, a retórica, a poesia, a filosofia moral ou a história.
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As viagens marítimas dos séculos XV e XVI precipitavam, dessa forma, um choque profundo entre os defensores do «Renascimento» da cultura clássica e aqueles que, diante das novidades trazidas pelos marinheiros, começaram a duvidar da superioridade do saber «antigo». Do prelo das modernas tipografias brotavam as primeiras edições impressas da Bíblia e dos autores mais procurados: Aristóteles, Platão, Estrabão, Euclides, Arquimedes, Plínio, Ptolomeu, Discórides, Sto. Agostinho, Galeno ...; adquirindo muitas destas obras uma divulgação extraordinária.
Digno de registo é o caso de Ptolomeu. Entre a primeira edição da sua Geografia em 1475 e o final do século XV seguiram-se 7 edições, aumentando esse número para 36 durante o século imediato. A obra de Ptolomeu também nos pode ajudar a compreender o embate brutal entre a novidade, que soprava dos meios náuticos, e a transmissão da cultura clássica, essencialmente nos centros eruditos. Essa confrontação está patente na forma como é interrompida a edição da Geografia do alexandrino em 1490; a nova imagem do Mundo imposta pelas navegações na viragem do século XV foi implicando alterações no quadro mental europeu que são traduzidas nas «tabulae novae» (cartas geográficas actualizadas) que acompanham a reedição da Geografia ptolomaica em 1507, depois de dezassete anos ausente das editoras.
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Uma nova mentalidade irrompia com base na explosão informativa que as navegações ofereciam. A «experiência» dos navegadores, abalando o prestígio dos autores clássicos mostrava que a existência de uma zona tórrida no Equador era uma falsa ideia, que afinal existiam antípodas e imensas variedades de estrelas e de povos desconhecidos e que a terra formava um único globo com os oceanos.
Em Portugal o Humanismo foi introduzido por mestres italianos:
- Mateus Pisano,
- Estevão de Nápoles,
- Cataldo Parísio Sículo.
Este Humanismo é de início essencialmente literário, aparecendo relacionado com o poder político e cultural do rei/Estado. Importa, no entanto, referir que esta cultura humanista vai estabelecendo pontos de contacto com os Descobrimentos e o seu meio envolvente.
Uma atitude mais céptica em relação às navegações e a crença na absoluta necessidade do conhecimento antigo sobrevive em humanistas fortemente influenciados pela realidade italiana: António Ferreira, Sá de Miranda, Francisco de Holanda e o estrangeiro George Buchanan. a elevação dos feitos dos «Modernos» a par da defesa da «ciência» herdada dos antigos, que possibilitara a empresa descobridora, era uma opinião defendida intransigentemente por homens com formação humanista, mas que estavam em contacto com o meio náutico e mercantil - marítimo:
- D. João de Castro (navegador e Vice-rei da Índia),
- João de Barros (feitor da Casa da Índia),
- Fernando Oliveira (piloto e tratadista naval),
- Pedro Nunes (Cosmógrafo–mor);
Uma terceira posição, mais radical, que se regozijava com os feitos das navegações foi apanágio de Garcia da Orta (farmacêutico) e Duarte Pacheco Pereira (navegador).
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Os centros de cultura humanista multiplicam-se um pouco por todo o país, Braga, Évora, Vila Viçosa, mosteiros, colégios, Universidade, na própria corte: círculos de D. Leonor, da Infanta D. Maria e do Infante D. Luís. Se os Descobrimentos se opuseram, de certa forma, ao Humanismo pelo facto de mostrarem os erros de que muitas obras clássicas estavam eivadas, possibilitando um conhecimento concreto e directo de uma nova flora, de uma nova fauna, de um novo céu e de novas populações, não é menos verdade que o Humanismo teve um papel determinante na divulgação dos Descobrimentos.
Um pouco por toda a Europa, os humanistas seguem com atenção e curiosidade o desenrolar da viagens oceânicas. Alguns deslocam-se aos portos ibéricos em busca de notícias. Em Portugal estiveram Martin Behaim e Hieronymus Münzer, dois alemães que ligam as navegações portuguesas aos centros de Humanismo na Europa Central.
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Outros casos houve em que foram humanistas portugueses a levar as notícias aos círculos eruditos (Pedro Margalho, o cosmopolita Damião de Góis, os bolseiros que estudavam nas várias universidades europeias tiveram essa papel) ou a verem as suas obras traduzidas (João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Garcia da Orta). A Europa culta dos Séculos XV e XVI tomava conhecimento, desta forma, do importante papel das navegações no despontar de um novo mundo científico». In Carlos Manuel Valentim, Instituto Camões.
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GRAFTON, Anthony, New Worlds Ancient Texts, The Power of Tradition and the Shock of Discovery, Cambridge, Massachusetts, London, Harvard University Press, 1995.
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RAMALHO, Américo da Costa, Para a História do Humanismo em Portugal (III), Lisboa, I.N.–C.M., 1998.
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