(1521-1577)
Cortesia de publicacoes foriente
Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.
Ameaçado com o exílio, Camões respondia altivamente.
Nem o tremendo estrépito da guerra.
Com armas, com incêndios espantosos,
Que despacham pelouros perigosos,
Bastantes a abalar uma alta serra.
Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que viu os olhos tão formosos,
Por quem o horror, nos casos pavorosos,
Por quem o horror, nos casos pavorosos,
De mi todo se aparta e se desterra.
A vida posso ao fogo e ferro dar
E perdê-la em qualquer duro perigo
E nelle, como phenix, renovar.
Não pôde mal haver para comigo.
De que eu já me não possa bem livrar,
Senão do que me ordena Amor imigo.
(Soneto 210)
Cortesia de fabiopestanaramos
Não havia remédio. O poeta recebeu ordem de sair de Lisboa para o Ribatejo e para aí se encaminhou, levando na alma a sua bem-amada, a sua alma, ou antes indo sem a alma, que ficava em poder daquella:
Mote (alheio)
Sem vós e com meu cuidado :
Olhai com quem e sem quem!
Glosa
Vendo Amor que, com vos ver,
Mais levemente soffria
Os males que me fazia,
Não me pôde isto soffrer.
Conjurou-se com meu fado,
Um novo mal me ordenou :
Ambos me levam forçado
Não sei onde, poisque vou
Sem vós e com meu cuidado.
Não sei qual é mais estranho,
Destes dous males que sigo :
Se não vos ver, se comigo
Levar imigo tamanho.
O que fica e o que vem,
Um me mata, outro desejo.
Com tal mal e sem tal bem,
Em tais extremos me vejo.
Olhai com quem e sem quem !
Outra glosa ao mesmo mote
Amor, cuja providencia,
Foi sempre que não errasse,
Porque na alma vos levasse,
Respeitando o mal da ausência.
Quis que em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado,
Eu e meu cuidado, sós,
Proveu nisso, de attentado,
Por não me ausentar de vós,
Sem vós e com meu cuidado.
Mas esta alma, que eu trazia,
Porque vós nella morais,
Deixa-me cego e sem guia,
Que ha por melhor companhia,
Ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem,
Onde quer a forte estrella,
Sem alma, que em si vos tem,
Co mal de viver sem ella :
Olhai com quem e sem quem !
Mote
Ferro, fogo, frio e calma,
Todo o mundo acabarão :
Mas nunca vos tirarão,
Alma minha, da minha alma !
Volta
Não vos guardei, quando vinha,
Em torre, força ou engenho,
Que mais guardada vos tenho
Em vós, que sois alma minha.
Alli nem frio nem calma
Não podem ter jurdição;
Na vida sim, porém não
Em vós, que tenho por alma.
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Quando foi o poeta forçado a sair de Lisboa ?
A respeito da estação do ano, não pode haver dúvida: foi na primavera.
Mote (alheio)
Campos benvaventurados,
Tomai-vos agora tristes,
Que os dias em que me vistes,
Alegres, já são passados.
Glosa
Campos cheios de prazer,
Vós que estais reverdecendo,
Já me alegrei com vos ver ;
Agora venho a temer
Que entristeçais em me vendo.
E pois a vista alegrais
Dos olhos desesperados,
Não quero que me vejais,
Para que sempre sejais
Campos bemaventurados.
Porém, se por accidente
Vos pesar de meu tormento,
Sabereis que Amor consente
Que tudo me descontente,
Senão descontentamento.
Porisso vós, arvoredos,
Que já nos meus olhos vistes
Mais alegria, que medos,
Se mos quereis fazer ledos,
Tornai-vos agora tristes.
Já me vistes ledo ser,
Mas despois que o falso Amor
Tão triste me fez viver,
Ledos folgo de vos ver,
Porque me dobreis a dor.
E se este gosto sobejo
De minha dor me sentistes,
Julgai quanto mais desejo
As horas que vos não vejo,
Que os dias em que me vistes.
O tempo, que é desigual,
De seccos, verdes vos tem,
Porque em vosso natural
Se muda o mal para o bem,
Mas o meu para mór mal.
Se perguntais, verdes prados.
Pelos tempos differentes,
Que de Amor me foram dados,
Tristes, aqui são presentes,
Alegres, já são passados.
(Redondilhas)
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas aguas de crystal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos ;
Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos de concerto desigual :
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.
E pois já me não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem aguas que correndo alegres vem.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lagrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
(Soneto 40)
Em que ano, porém, se passaria isto? Temos, me parece, uma indicação valiosa nas seguintes redondilhas:
Mote
De atormentado e perdido,
Já vos não peço senão
Que tenhais no coração
O que tendes no vestido.
Volta
Se de dó vestida andais
Por quem já vida não tem,
Porque não o haveis de quem
Vós tantas vezes matais ?
Que brado, sem ser ouvido,
E nunca vejo senão
Cruezas no coração,
E grande dó no vestido.
Cortesia de purl
Atormentado e perdido, isto é, vendo já diante de si o exilio, o poeta pede à Infanta que tenha por ele o dó que traz no vestido.
Ora pouco depois do começo da Primavera de 1547 tomou a filha de D. Manuel luto rigoroso pelo padrasto, Francisco I, falecido em 31 de Março desse ano. Se é fundada a conjectura que acima apresentei acerca do ano em que o poeta começou a por o pensamento na Infanta (1546), teria assim durado uns doze meses o periodo que acabamos de percorrer.
E devo acrescentar que, se o mínimo não pode deixar de ser um ano, de primavera a primavera, também dificilmente a pretenção do poeta se poderia ter prolongado por mais tempo, sem ser necessário pôr-lhe cobro.
Antes de acompanharmos Camões no seu amargurado exílio, cumpre fazer referência a alguns factos anteriores, de que ele nos dá noticia.
Seja o primeiro uma ausência da formosa Infanta, que motivou, entre outras poesias, estes três sonetos, tão belos, tão repassados de amorosa saudade:
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sobre as rosas esparzidos,
Fazeis que sua graça se accrescente :
Olhos, que vos moveis tão docemente.
Em mil divinos raios incendidos :
Se de cá me levais a alma e os sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente ?
Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e corais nasce e apparece.
Oh! quem seus doces ecos já lhe ouvisse !
Se, imaginando só tanta belleza (1),
De si, com nova gloria, a alma se esquece,
Que será quando a vir ? Ah quem a visse!
Que será quando a vir ? Ah quem a visse!
(Soneto 84)
__________________________________(1) Brantôme, que era entendido no assunto, dá-nos também testemunho da formosura da Infanta, em uma pagina das Dames galantes, que vale a pena transcrever na íntegra. Falando de senhoras que não quiseram casar, diz o célebre cortesão e aventureiro francês : «J'ay veu l'infante de Portugal, filie de la feu reyne Eleonor, en mesme resolution; et est morte filie et vierge en l'aage de soixante ans ou plus. Ce n'est pas faute de grandeur, car ell'estoit grande en tout; ny par faute de biens, car elle en avoit force, et mesme en France, où M. le general Gourgues a bien fait ses affaires; ny pour faute de dons de nature, car je l'ay veue à Lisbonne, en l'aage de quarante-cinq ans, une tres-belle et agreable fille, de bonne grace et belle aparance, douce, agreable, et qui meritoit bien un mary pareil à elle en tout, courtoise, et mesmes à nous autres François. Je le peux dire pour avoir eu cest honneur d'avoir parle à elle souvant et privement. Feu M. le grand prieur de Lorraine, lorsqu'il mena ses galleres du Levant en Ponant pour aller en Escosse, du temps du petit roy François, passant et sejournant à Lysbonne quelques jours, la visita et veid tous les jours. Elle le receut fort courtoisement et se pleust fort en sa compaignie, et lui fit tout plein de beaux presens. Entre autres, luy bailia une chaisne pour pendre sa croix, toute de diamans et rubisj et perles grosses, proprement et richement elabourée; et pouvoit bien valloir de quatro à cinq mill'escus, et luy faisoit trois tours. Je croy qu'elle pouvoit bien valloir cela, car il l'engageoit tousjours pour trois mill'escus, ainsi qu'il fit une fois à Londres, lorsque nous tournions d'Escosse ; mais aussitost estant en France il l'envoya desengager, car il l'aymoit pour l'amour de la dame de laquelle il estoit encaprissé et fort pris. Et croy qu'elle ne l'aymoit point moins, et que voluntiers ell'eust rompu son neud virginal pour luy; cela s'apelle par mariage, car c'estoit une tres-sage et veriueuse princesse. Et si diray bien plus, que, sans les premiers troubles qui commençarent en France, ou messieurs ses freres l'attiroient, et l'y tenoient, il voulut luy-mesmes retourner ses galleres et reprendre mesme routtc, et revoir ceste princesse et lui parler de nopces; et croy qu'il n'y fust point esté esconduict, car il estoit d'aussi bonne maison qu'elle, et extraict de grands roys comm'elle, et surtout l'un des beaux, des agreables, des honnestes et des meilleurs prínces de la chresticnté.
Direi ainda que Brantôme recebeu de D. Sebastião o hábito de Cristo. E talvez a filha da rainha D. Leonor não fosse estranha à concessão desta mercê.
____________________________Do estan los claros ojos, que, colgada,
Mi alma trás de si llevar solian ?
Do estan las dos mexillas, que vencian
La rosa, quando está mas colorada ?
Do está la roxa boca, y adornada
Con dientes, que de nieve parecian ?
Los cabellos, que el oro escurecian,
Do estan, y aquella mano delicada ?
O toda linda! Do estarás agora,
Que no te puedo ver, y el gran deseo
De verte me da muerte cada hora !
Mas no mirais mi grande devaneo ?
Que tenga yo en mi alma a mi senora
E diga: Donde estás, que no te veo 1
(Soneto 328)
De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausência me consente,
Sobre as asas do Amor, ousadamente,
O mal soffrido esprito vai buscar-vos;
E, se não receara de abrasar-vos
Nas chammas, que por vossa causa sente,
Lá ficara comvosco, e, vós presente,
Aprendera de vós a contentar vos.
Mas, pois que estar ausente lhe é forçado.
Por senhora, de cá, vos reconhece.
Aos pés de imagens vossas inclinado.
E pois vedes a fé que vos offrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-eis inda mais do que merece.
(Soneto 116)
Como tardava para o enamorado poeta o dia em que podesse tornar a ver a sua saudade!
Continua, numa próxima oportunidade!
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT