quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «As crónicas passaram a constituir deste modo um dos mais graves problemas dentro da política do Estado, pois haviam de ser ou meros instrumentos políticos, relatando apenas o «quantum satis» a alegar como prova, ou, caso contrário, perigosas fontes de informação e de denúncia para as nações rivais»

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Alguns dos feitos que se calaram
«Castela, possuidora dum ponto de apoio no noroeste africano e dum arquipélago atlântico, podia desenvolver, e fatalmente o faria, uma acção navegadora paralela à nossa. Era exactamente na época em que, dobrado o Bojador, o infante continuava a navegar para o sul, e acabava, além disso, de reconhecer quase todo o arquipélago dos Açores. Por sua vez, o papa, hesitante entre as duas nações em luta, envia em Julho de 1436 uma bula a D. Duarte, em que o aconselha a que não intente cousa em prejuízo do rei de Castela, pois este reclama para si a conquista das terras de África e das ilhas Canárias.
Como responde a isto o infante D. Henrique?

Obtém em Setembro desse mesmo ano uma bula de cruzada contra os infiéis em África e «lança-se, no ano seguinte, à empresa de Tânger, como o mais eficaz dos meios de se antepor aos projectos de Castela, enquanto doutro lado continua em luta renhidíssima pela posse das Canárias».
Vista a esta luz e conjugada com este último facto, a empresa de Tânger, tantas vezes encarada como produto da belicosidade cega e contumaz do Infante, ganha de súbito um alcance imenso e atinge, em relação ao plano dos Descobrimentos e aos perigos da intromissão de Castela, tantos anos retardada, uma visão genial. Desta forma o desastre de Tânger produzia, não obstante, consequências proveitosas: sofrera as ambições alheias, patenteando os perigos terríveis da empresa.

 
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Mau grado esse desenlace trágico e a oposição castelhana, o Infante não recua. Ainda no reinado de D. Duarte ele tenta obter pelos meios diplomáticos por parte de Castela a cedência dos direitos que esta se arrogava sobre as Canárias. Estes esforços repetem-se durante a regência de D. Pedro e, logo após a sua morte, no reinado de D. Afonso. Como Castela não cedesse, o Infante resolve-se a empregar os meios violentos; e só entre 1450 e 1453 envia quatro armadas sucessivas a combater o arquipélago.
Sabemos igualmente que os castelhanos não desistem dos seus projectos, e, pouco depois dos nossos descobrimentos da costa ocidental de África, começaram a enviar navios a comerciar naquelas partes. Em 1452, quando algumas caravelas de Sevilha e Cádis voltavam da Guiné, foram atacadas pelo «varinel» do corsário português Palenço, ao serviço do Infante, que aprisionou uma delas, trazendo-a carregada de mercadorias para o reino. Os tripulantes ficaram todos presos, e a um genovês, mercador de Sevilha, que acompanhava o navio, mandou o rei cortar as mãos. De parte a parte, por causa destes factos, sucedem-se as embaixadas, tendo João II de Castela enviado em 1454 dois emissários à corte portuguesa com uma carta de protesto contra os ataques às ilhas das Canárias e os apresamentos dos seus navios que iam à «la tierra que llaman Guinea, que es de nuestra conquista». Finalmente, no começo desse mesmo ano, uma bula de Nicolau V, proibindo, sob pena de excomunhão, a todos os cristãos que se intrometessem nas navegações portuguesas, sancionava o monopólio de D. Henrique, sem evitar aliás que os castelhanos o continuassem a atacar. Assim os perigos que para a nossa empresa representavam uma possível expansão espanhola no Atlântico e as sucessivas pretensões da coroa castelhana aos nossos descobrimentos justificavam só por si e plenamente que desde o começo nós o rodeássemos do maior sigilo.

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Das mesmas citadas «Alegações» de D. Afonso de Cartagena se depreende, todavia, que as crónicas podiam desempenhar uma função especialíssima nos debates internacionais sobre as conquistas de além-mar. Com efeito, depois de declarar que em disputas não se admitia prova por testemunhos que excedessem a nossa memória e a dos nossos maiores, enumera ele as diferentes espécies de prova, que é lícito alegar. A primeira de todas, declara o bispo, são as crónicas. «Prima species probandi est per crónicas…». E, reivindicando para a coroa castelhana a Tingitânia e a cidade de «Tangar», logo cita em apoios vários textos de história. Assim as crónicas, se por um lado podiam desvelar aos inimigos os nossos planos extemporânea e perigosamente, pelo outro podiam servir, em caso de litígio, como documento autêntico do direito de posse ou de «conquista», segundo a expressão da época.

As crónicas passaram a constituir deste modo um dos mais graves problemas dentro da política do Estado, pois haviam de ser ou meros instrumentos políticos, relatando apenas o «quantum satis» a alegar como prova, ou, caso contrário, perigosas fontes de informação e de denúncia para as nações rivais. Aqui devemos apontar um caso que provavelmente se relaciona com estas considerações:
  • Ainda em vida do infante D. Henrique existia ao serviço de D. Afonso V um certo Álvaro Gonçalves de Cáceres, cujo nome denuncia origem castelhana, e era, de seu ofício, “leitor das crónicas e livros de Castela”. No documento, em que o rei premeia os seus serviços, dando-lhe armas de cavaleiro, chama-lhe “discreto e varão virtuoso e fiel”.
Procurávamos habilmente, é bem de ver-se, estar ao facto dos planos, dos segredos, dos títulos de posse de Castela. E era natural, em quem tão de perto espiava as crónicas alheias, que se acautelasse com as suas (232)». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Continua
Cortesia de Portugália Editora/JDACT