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«Desditoso príncipe! A vida decorreu-lhe, com efeito, sob o pesado signo da desventura e da fatalidade, apesar de a História o marcar, sem fazer ironia, com o triunfante epíteto de “Vitorioso”. Vitorioso, este pobre vulto humano, de quem o célebre António Vieira dizia lapidarmente:
- «Era manco de um pé, era aleijado de um braço, aquela parte da cabeça padecia o mesmo defeito, porque a força do mal, de que escapou quase milagrosamente, como diziam os médicos, o partiu pelo meio; mas assim, partido pelo meio, o vimos sempre vitorioso; que parece quis mostrar Deus a todas as nações que bastava a metade dum Rei de Portugal para resistir e vencer a maior monarquia do mundo».
Não fosse ter ele a seu lado esse gigantesco estadista que era o Conde de Castelo Melhor e a História decerto não lhe chamaria vitorioso!
Apesar das enfermidades que o inferiorizavam fisicamente, gostava de cavalgar, sem que, algumas vezes, pudesse aguentar-se em cima do animal. «Tinha, contudo, ocasiões em que os seus discursos eram suportáveis, chegando a parecer produto de um espírito sensato. O rei não sabe dissimular, diz sempre o que na verdade entende, não tem reserva e não adverte às circunstâncias do tempo nem de lugar». E mais adiante, o embaixador inglês Southwell, que assim escreveu, informa ainda:
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- «Deleita-se em matar, por sua própria mão toiros, ursos e outros brutos ferozes. Faz do dia noite e da noite dia».
Enquanto isto, a rainha, já nessa altura certamente identificada quanto à morbidez frígida e invencível do seu real esposo a «mais formosa senhora da Europa», a «pulquérrima consorte» ou a «Virgem e Mártir», no floreado verbal da época, naturalmente ofendida nos seus mais legítimos direitos de mulher e de esposa, pensa, em si própria, ou sob conselhos de alguém interessado na causa, em desquitar-se oficialmente do marido, para o que terá, decerto, boas alegações legais. Separar-se de direito, que de facto, já eles, há muito, estavam distanciados
O infeliz monarca bem se apercebia, em certos lances ou em períodos de crise, da desventura que o atormentava. Nesses instantes, cedendo a intensa revolta íntima, chorava, encolerizava-se, arrepelava-se, praticava distúrbios, em reacções violentas, que provocavam o receio em quem lhe estivesse próximo. Que trágico padecimento o deste homem semi-inútil, que, no entanto procurava aturdir-se, querendo talvez, em vãs tentativas, convencer-se do seu poder masculino, no meio de determinadas e incompletas aventuras amorosas! O processo, que lhe tirou a esposa e o afastaria também do trono é um completo estendal de misérias humanas, de escândalos, de ignomínias, em que mergulharam não só o rei inditoso mas a própria rainha, o príncipe D. Pedro, e até algumas testemunhas que foram chamadas a nele depor.
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Na verdade ali foram patenteados ascorosos episódios, pormenores torpes, vilezas chocantes, que deixaram os protagonistas a escorrer lodo no que respeita aos mais íntimos sentimentos. Um autêntico tratado de psicologias, as mais desconcertantes, daria o estudo das três altas personalidades envolvidas no escandaloso processo e ainda a de algumas testemunhas, que nele depuseram, entre as quais não faltaram certas freiras. Convém, porventura, salientar que por essas épocas não eram os conventos positivamente alfobres de cristãs virtudes, a acreditar em autores de reconhecida idoneidade.
São conhecidos os nomes de religiosas que foram amásias do próprio Afonso VI, como, por exemplo, Catarina Arrais de Mendonça, a maliciosa Feliciana de Milão e Ana Angélica de Moura, estas duas últimas pertencentes ao, a todos os títulos, famoso convento de Odivelas, «harém de reis», e a primeira, freira professa do convento de Sant’Ana, de Lisboa, além de uma tal Calcanhares e de outras aventuras do género». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
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