quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Leituras. Parte XXXVI. António Damásio. Ao Encontro de Espinosa: «A julgar pelo tom da sua correspondência, Espinosa era simpático com a gente simples e impaciente com os seus pares. Ao que parece tolerava aqueles que eram tolos mas modestos, mas não a outra espécie de tolos. Sei que o túmulo de Espinosa está no adro da Igreja, e da casa dos vivos talvez não seja má ideia ir para a casa dos mortos»

Cortesia de tribodejacob e vdrpatricewordpress

«Mas aos 24 anos, depois de ter sido expulso da sua própria sinagoga, Espinosa adoptou o nome de Benedictus, abandonou o conforto da casa de família e começou a calma e deliberada jornada cuja última paragem foi aqui no Paviljoensgracht. O nome português Bento, o nome hebreu Baruch e o nome Benedictus em latim têm precisamente o mesmo significado: bendito. Que diferença fazia, um nome ou outro? Uma imensa diferença, diria eu; as palavras podiam ser superficialmente equivalentes, mas o conceito por detrás de cada uma delas era radicalmente diferente.

Cuidado
A porta do Paviljoensgracht continua fechada e de momento a única coisa que posso fazer é imaginar alguém a sair de uma barca atracada próxima do número 72 e a caminhar para a casa na esperança de ser recebido por Espinosa, nesses tempos, o Paviljoensgracht era um canal largo; mais tarde o canal foi cheio de entulho e transformado numa rua, tal como tantos outros canais em Amsterdão ou Veneza. O simpático Van der Spijk, senhorio de Espinosa e pintor abre a porta. Manda entrar o visitante para o seu estúdio, que fica atrás das duas grandes janelas junto à porta principal, e pede-lhe para esperar enquanto previne Espinosa, o seu inquilino.

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Os quartos de Espinosa são no terceiro andar e ele irá descer pela escada de caracol, uma daquelas escadas íngremes e apertadas que dão mau nome à arquitectura holandesa. Espinosa está elegantemente vestido na sua farpela fidalga, nada de muito novo, nada de muito gasto, tudo em bom estado, colarinho branco engomado, calças pretas de veludo, colete de cor preta, casaco de pêlo de camelo preto, corte perfeito, sapatos de verniz preto e fivela de prata. Ah, falta a bengala de madeira, indispensável para o descer da escada.

A entrada de Espinosa é fulgurante. Tem um rosto equilibrado, uma pele barbeada e os olhos negros e brilhantes dominam a sua presença. O cabelo é preto, a pele amendoada, a estatura média. Com delicadeza e afabilidade mas com grande economia de palavras, Espinosa pede ao visitante que faça as suas perguntas. As respostas virão durante o chá. Van der Spijk continuará a pintar silenciosamente mas com uma dignidade salubre e democrática. Os seus sete filhos não perturbam a calma da tarde. A Senhora Van der Spijk costura fora da cena. As duas criadas preparam o jantar.
Espinosa fuma o seu cachimbo e o aroma do tabaco colide com o da aguarrás durante as perguntas e respostas. Entardece. Atrás destas janelas Espinosa recebeu centenas de visitantes, desde vizinhos e familiares dos Van der Spijk a jovens estudantes, desde Gottfried Leibniz e Christiaan Huygens a Henry Oldenburg, presidente da Royal Society Inglesa então acabada de criar. A julgar pelo tom da sua correspondência, Espinosa era simpático com a gente simples e impaciente com os seus pares. Ao que parece tolerava aqueles que eram tolos mas modestos, mas não a outra espécie de tolos.

Cortesia de imagensdigitais e filosofarpreciso

Também posso imaginar um cortejo fúnebre num outro dia cinzento, 25 de Fevereiro de 1677. O caixão tosco de Espinosa, seguido, a pé, pela família Van der Spijk, e por muitos homens ilustres ocupando seis carruagens, em marcha vagarosa a caminho da Igreja Nova. Decido então caminhar para a Igreja Nova reconstituindo o trajecto provável do cortejo. Sei que o túmulo de Espinosa está no adro da Igreja, e da casa dos vivos talvez não seja má ideia ir para a casa dos mortos.

Não se trata de um cemitério no sentido próprio do termo. É um adro de igreja, por detrás de grades mas com portões abertos, rodeado por edifícios da cidade, arbustos e relvado, musgo, trilhos de pedra e lama no meio de árvores altas. Encontro o túmulo exactamente onde tinha previsto, nas traseiras da igreja, uma campa rasa e uma pedra vertical, envelhecidas pelo tempo e sem qualquer decoração. A pedra vertical tem o nome de Espinosa e a inscrição «caute», o que significa «cuidado». O conselho é um pouco arrepiante quando se pensa que os restos mortais de Espinosa não estão, de facto, aqui, e que o seu corpo foi roubado, não se sabe de todo por quem, enquanto jazia na igreja, algumas horas depois do funeral. Espinosa tinha-nos dito que cada um devia pensar o que quisesse e dizer aquilo que pensava, mas mais devagar. Era preciso ter cuidado. Ainda é. Cuidado com o que se diz e se escreve ou nem os ossos se aproveitam. Espinosa usou a palavra ‘caute’ na sua correspondência, por baixo do desenho de uma rosa. Durante a última década da sua vida, todas as suas palavras foram ‘sub-rosa’. O frontispício do ‘Tractatus’ indicava um impressor fictício e uma cidade de impressão (Hamburgo) onde o livro não foi, de facto, impresso. O espaço para o nome do autor estava em branco. Mesmo assim, e apesar do livro ter sido escrito em latim e não em holandês, as autoridades holandesas proibiram-no em 1674. Tal como era de esperar o livro foi colocado no Índex do Vaticano». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT