quinta-feira, 15 de março de 2012

Almeida Garrett no Romantismo Europeu. Helder Macedo. «Isto, por sua vez, permite sugerir que a oculta manipulação autoral do romance realista pode levar a uma objectividade mais falsificada do que a evidência assumida de uma perspectiva autoral que não se oculte do leitor»

Cortesia de aprovadosnoves

O parecer não fazê-lo é apenas uma estratégia literária, como o autor interveniente parecer dialogar com um hipotético leitor também havia sido. Assim, o que o romance realista basicamente fez foi substituir a função narrativa do autor visível pela estratégia narrativa do autor implícito, o qual parece. mas apenas parece, estar a deixar que as representações literárias a que HypoliteTaine gostava de chamar ‘factos significativos’ falem por si próprios na sequência narrativa em que sejam justapostos, numa técnica de corte e montagem semelhante à que depois veio a ser adoptada pela mais manipuladora das artes, o cinema. Porque basta esgaravatar a superfície dos textos para logo se tornar evidente que o autor não-interveniente continua a intervir no seu texto através da organização estrutural que lhe confere, que continua a manifestar a sua subjectividade através da objectividade aparente dos factos que escolheu como significativos, e que continua a comentá-los através do modo como os justapõe. Uma cena trágica não significa o mesmo se for justaposta com uma situação de farsa, como Shakespeare bem sabia. E há sempre intervenção da subjectividade autoral, se é que não mesmo um disfarce autobiográfico, na selecção e justaposição dos chamados ‘factos significativos’. Nem há como evitá-la se mesmo as situações mais fictícias são sempre a imaginação autoral de ter visto o que não viu, se mesmo as personagens mais fictícias são sempre a memória autoral de ter sido quem não é.

Isto, por sua vez, permite sugerir que a oculta manipulação autoral do romance realista pode levar a uma objectividade mais falsificada do que a evidência assumida de uma perspectiva autoral que não se oculte do leitor. Ou que, em sentido oposto, a aparência autobiográfica do subjectivismo romântico pode ser usada como uma estratégia literária de despersonalização autoral até mesmo na criação de personagens em que o autor pareça projectar-se. É o caso de Carlos, nas “Viagens na Minha Terra” que, longe de ser o duplo de Garrett, é o seu oposto semântico. E, paradoxalmente, tanto mais o é quanto o que biograficamente sabemos de Garrett e o que Garrett nos diz da sua personagem parecem factualmente convergir. Carlos é o eu alternativo em que Garrett teria podido tornar-se se não tivesse optado por outras possibilidades de ser, não é um auto-retrato autoral.


O que Garrett fez foi uma ficção equivalente à que o literariamente inclassificável Henry James, irmão do psicólogo WilÌiam James, que publicou estudos pioneiros sobre as chamadas personalidades múltiplas, iria fazer na novela ‘The Jolly Corner’, quando o narrador confronta o monstruoso ele-próprio-outro que também teria podido vir a ser». In Helder Macedo, Leituras de Almeida Garrett, Revista da Biblioteca Nacional, 1999, Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Cortesia da BNP/JDACT