domingo, 11 de março de 2012

Camões e a Infanta D. Maria. Parte XIV. Ceuta. «Mas, como se não bastasse o ser a Fortuna uma entidade tão caprichosa, não há quem dela não espere alguma coisa! A ambição, o “pretender do mundo fama e fruto”, faz com que ninguém lhe escape, nem mesmo quem professa desprezá-la! Pode dizer-se que este desconcerto da Fortuna não data d'agora, antes é tão antigo como o mundo. Mas isto não resolve, antes agrava o problema»

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Na elegia 2ª, dirigida, segundo creio, a D. Francisco de Noronha, o poeta reconhece que nada o “defende das lembranças amorosas” e declara escrever o “seu derradeiro canto”. Se o exílio não termina, venha a morte.


Aquella que, d'amor descomedido,
Por o formoso moço se perdeu,
Que só por si d'amores foi perdido,
Despois que a deusa em pedra a converteu,
De seu humano gesto verdadeiro
A ultima voz só lhe concedeu.
Assi meu mal do próprio ser primeiro
Outra cousa nenhuma me consente,
Que este canto, que escrevo derradeiro.
E se uma pouca vida, estando ausente.
Me deixa Amor, é porque o pensamento
Sinta a perda do bem de estar presente.
Senhor, se vos espanta o soffrimento,
Que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
Furto este breve espaço a meu tormento.
Porque, quem tem poder para soffrê-lo,
Sem se acabar a vida co cuidado,
Também terá poder para dizê-lo.
Nem eu escrevo um mal, já acostumado,
Mas na alma minha, triste e saudosa,
A saudade escreve e eu traslado.
Ando gastando a vida trabalhosa
E esparzindo a continua soidade.
Ao longo d'uma praia soidosa.
Vejo do mar a instabilidade.
Como com seu ruído impetuoso
Retumba na maior concavidade.
De furibundas ondas poderoso.
Na terra, a seu pesar, está tomando
Lugar, em que se estenda cavernoso.
Ella, como mais fraca, lhe está dando
As concavas entranhas, onde esteja
Sempre com som profundo suspirando.
A todas estas cousas tenho inveja
Tamanha, que não sei determinar-me,
Por mais determinado que me veja.
Se quero em tanto mal desesperar-me,
Não posso, porque Amor e saudade
Nem licença me dão para matar-me.
As vezes, cuido em mi se a novidade
E estranheza das cousas, co a mudança.
Poderiam mudar uma vontade.
E com isto figuro na lembrança
A nova terra, o novo trato humano,
A estrangeira progénie, a estranha usança.

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Subo-me ao monte que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividiu.
Dando caminho ao Mar Mediterrano;
D'alli estou tenteando adonde viu
O pomar das Hespérides, matando
A serpe que a seu passo resistiu.
Estou-me em outra parte figurando
O poderoso Anteu, que derribado
Mais força se lhe vinha accresccntando;
Porém, do Herculeo braço subjugado,
No ar deixando a vida, não podendo
Dos soccorros da mãe ser ajudado.
Mas nem com isto, emfim, que estou dizendo,
Nem com as armas tão continuadas,
De amorosas lembranças me defendo.
Todas as cousas vejo demudadas.
Porque o tempo ligeiro não consente
Que estejam de firmeza acompanhadas.
Vi já que a primavera, de contente,
Em variadas cores revestia
O monte, o campo, o valle, alegremente.
Vi já das altas aves a harmonia.
Que até duros penedos convidava
A algum suave modo de alegria.
Vi já que tudo emfim me contentava
E que, de muito cheio de firmeza.
Um mal por mil prazeres não trocava.
Tal me tem a mudança e estranheza.
Que, se vou por os prados, a verdura
Parece que se secca de tristeza.
Mas isto é já costume da ventura,
Porque aos olhos que vivem descontentes.
Descontente o prazer se lhes figura.
Oh graves e insoffriveis accidentes
Da Fortuna e d'Amor ! Que penitencia
Tão grave dais aos peitos innocentes !
Não basta examinar-me a paciência
Com temores e falsas esperanças,
Sem que também me tente o mal de ausência?
Trazeis um brando espirito em mudanças,
Para que nunca possa ser mudado
De lagrimas, suspiros e lembranças.
 
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E, se estiver ao mal acostumado,
Também no mal não consentis firmeza,
Para que nunca viva descansado.
Já quieto me achava co a tristeza
E alli não me faltava um brando engano,
Que tirasse desejos da fraqueza.
Mas, vendo-me enganado estar ufano,
Deu á roda a Fortuna, e deu comigo
Onde de novo choro o novo dano.
Já deve de bastar o que aqui digo,
Para dar a intender o mais que calo
A quem já viu tão aspero perigo.
E, se nos brandos peitos faz abalo
Um peito magoado e descontente,
Que obriga a quem o ouve a consolá-lo.
Não quero mais senão que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra,
Que alguma dellas me fará contente.
Porque, se o duro fado me desterra
Tanto tempo do bem, que o fraco esprito
Desampare a prisão, onde se encerra,
Ao som das negras aguas do Cocito,
Ao pé dos carregados arvoredos.
Cantarei o que na alma tenho escripto.
E por entre estes hórridos penedos,
A quem negou Natura o claro dia,
Entre tormentos ásperos e medos.
Com a tremula voz, cansada e fria,
Celebrarei o gesto claro e puro,
Que nunca perderei da phantasia.
O musico da Thracia, já seguro
De perder sua Eurydice, tangendo
Me ajudará, ferindo o ar escuro.
As namoradas sombras, revolvendo
Memorias do passado, me ouvirão,
E com seu choro o rio irá crescendo.
Em Salmoneu as penas faltarão,
E das filhas de Bello juntamente
De lagrimas os vasos se encherão.
Que, se amor não se perde em vida ausente,
Menos se perderá por morte escura.
Porque, emfim, a alma vive eternamente,
E amor é effeito da alma, e sempre dura.
 
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Percorramos agora a epistola 1ª, a que alguns dão o nome de “Oitavas sobre o desconcerto do mundo”. Apresentando-se como vítima da Fortuna, o poeta começa por formular o grave problema que sugere a observação quotidiana: Se existe uma Providência, como é que há maus que prosperam e bons que são infelizes? Como é que a Fortuna pôde favorecer os primeiros e tornar a vida amargurada aos segundos?

Quem ha que veja aquelle que vivia
De latrocinios, mortes e adultérios,
Que ao juízo das gentes merecia
Perpetua pena, immensos vitupérios.
Se a Fortuna em contrario o leva e guia.
Mostrando emfim que tudo são mysterios,
Em alteza de estados triumphante,
Que, por livre que seja, não se espante?
Quem ha que veja aquelle que tão clara
Teve a vida, que em tudo por perfeito
O próprio Momo ás gentes o julgara,
Inda quando lhe visse aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
O reprime e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?
 

Houve um filósofo grego que procurou resolver a questão, admitindo a existência de dois deuses, mas esta solução não se conforma nem com os princípios racionais, nem com a doutrina cristã. 

Demócrito dos deuses proferia
Que eram só dous : a Pena e o Benefício.
Segredo algum será da fantasia,
De que eu achar não posso claro indicio;
Que, se ambos vem por não cuidada via
A quem os não merece, é grande vicio
Em deuses sem-justiça e sem-razão.
Mas Demócrito o disse e Paulo não.

Pode dizer-se que este desconcerto da Fortuna não data d'agora, antes é tão antigo como o mundo. Mas isto não resolve, antes agrava o problema. 

Dir-me-eis que, se este estranho desconcerto
Novamente no mundo se mostrasse,
Que, por livre que fosse e mui experto,
Não era de espantar, se me espantasse;
Mas que, se já de Sócrates foi certo
Que nenhum grande caso lhe mudasse
O vulto, ou de prudente ou de constante,
Exemplo tome delle e não me espante.
Parece a razão boa; mas eu digo
Deste uso da Fortuna tão damnado
Que, quanto é mais usado e mais antigo,
Tanto é mais estranhado e blasphemado.
Porque, se o Ceu, das gentes tão amigo,
Não dá á Fortuna tempo limitado,
Não é para causar mui grande espanto,
Que mal, tão mal olhado, dure tanto?

Mas, como se não bastasse o ser a Fortuna uma entidade tão caprichosa, não há quem dela não espere alguma coisa! A ambição, o “pretender do mundo fama e fruto”, faz com que ninguém lhe escape, nem mesmo quem professa desprezá-la!»
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts. 

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/ JDACT