jdact
Ver
«Estas páginas representam um esforço para “ver e fazer ver” o que vem a ser o que exige o Homern se o colocamos, todo inteiro e até aa fim, no quadro das aparências.
Porque procurar ver? E porque fixar especialmente o nosso olhar sobre o objecto humano? “Ver”. Poder-se-ia dizer que toda a vida consiste em ver, senão finalmente, pelo menos essencialmente. Ser mais é unir-se mais: tais serão o resumo e a própria conclusão desta obra. Mas, como verificaremos ainda, a unidade não aumenta senão sustentada por um acréscimo de consciência, isto é de visão. Eis porque, sem dúvida, a história do Mundo vivo se reduz à elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmo onde é possível discernir cada vez mais. A perfeição de um animal, a supremacia do ser pensante, não se avaliarão pela penetração e pelo poder sintético do seu olhar? Procurar ver mais e melhor não é, pois, uma fantasia, uma curiosidade, um luxo. Ver ou perecer.
Tal é a situação imposta pelo bom misterioso da existência a tudo quanto é elemento do Universo. E tal é, por consequência, num grau superior, a condição humana.
Mas, se conhecer é verdadeiramente tão vital e beatificante, porque dirigir, insisto, a nossa atenção de preferência para o Homem? Não estará já o Homem suficientemente descrito? Não será ele suficientemente enfadonho? E não consistirá precisamente um dos atractivos da ciência em desviar os nossos olhos e pousá-los sobre um objecto que deixe enfim de ser nós próprios?
Por dupla razão, que duas vezes o faz centro do Mundo, o Homem impõe-se ao nosso esforço para ver, como chave do Universo.
Subjectivamente, e antes de mais, somos inevitavelmente ‘centro de perspectiva’, em relação a nós mesmos. Terá sido canduta, provavelmente necessária, da Ciência nascente, imaginar que podia observar os fenómenos em si, como se se desenrolassem independentemente de nós próprios. Instintivamente, físicos e naturalistas operaram a princípio como se o seu olhar mergulhasse do alto sobre um Mundo que a sua consciência podia penetrar sem ser marcada por ele e sem o modificar. Começam agora a perceber que as suas observações mais objectivas estão todas impregnadas de convenções escolhidas de início, e também das formas ou maneiras habituais de pensar desenvolvidas no decurso do processo histórico da Investigação.
Cortesia de odrigocaldeira
Chegados ao extremo das suas análises, já não sabem dizer se a estrutura por eles atingida é a essência da Matéria que estudam ou então o reflexo do seu próprio pensamento. E simultaneamente lembram-se que, por um contragolpe das suas descobertas, eles próprios se encontram envolvidos, corpo e alma, na rede das relações que pensavam lançar de fora sobre as coisas: apanhados na sua própria armadilha. Metamorfismo e endomorfismo, diria um geólogo. Objecto e sujeito aliam-se e transformam-se mutuamente no acto de conhecimento. Quer gueira quer não, a partir de então, o Homem encontra-se e olha-se a si próprio em tudo o que vê.
Eis uma servidão, mas imediatamente compensada por uma segura e única grandeza.
Para um observador, é simplesmente banal, e até constrangedor, transportar consigo, para onde quer que vá, o centro da paisagem que atravessa. Mas que acontece ao caminhante se o acaso do passeio o leva a um ponto naturalmente propício, cruzamento de estradas ou de vales, a partir do qual não somente o olhar, mas as próprias coisas irradiam?
Então, coincidindo o ponto de vista subjectivo com uma distribuição objectiva das coisas, a percepção estabelece-se na sua plenitude. A paisagem decifra-se e ilumina-se. Vemos. Tal parece ser o privilégio do conhecimento humano.
Não é necessário ser-se homem para aperceber os objectos e as forças ‘em círculo’ à sua volta. Todos os animais se encontram neste caso, tal como nós próprios. Mas é próprio do Homem ocupar na Natureza uma posição tal que esta convergência de linhas não é apenas visual, mas estrutural. As páginas que se seguem nada mais farão do que verificar e analisar este fenómeno. Em virtude da qualidade e das propriedades biológicas do Pensamento, encontramo-nos colocados num ponto singular, num nó, que domina a fracção inteira do Cosmo actualmente aberta à nossa experiência. Centro de perspectiva, o Homem é ao mesmo tempo “centro de construção” do Universo.
Tanto por conveniência como por necessidade, é pois a ele que, finalmente, toda a Ciência tem de ser referida. Se, verdadeiramente, ver é ser mais, olhemos o Homem, e viveremos mais. E para isso acomodemos correctamente a nossa vista». In Pierre Teilhard de Chardin, Le Phénomène Humain, O Fenómeno Humano. Filosofia e Religião, biblioteca fundada por Leonardo Coimbra, Livraria Tavares Martins, Porto, 1970.
Cortesia de L. Tavares Martins/JDACT