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«E. se se pode admitir no texto literário, como em toda a produção artística (nomeadamente na música), que evoque não a ordem mas a desordem da realidade, não a sua compreensibilidade através da demonstração da estrutura e dos seus mecanismos, mas a desorientação subjectiva do sujeito perante a dificuldade de lhe descobrir o sentido ou de se orientar no meio das suas contradições. Isso já não pode acontecer com a História. A História destina-se, justamente, a tentar demonstrar que existe uma ordem no mundo, e que uma das mais importantes chaves da sua descoberta é a repartição de existência em passado e presente e o estudo do passado em grandes planos, para encontrar as razões profundas dos movimentos colectivos.
Isto não quer dizer que se deva ignorar a dificuldade levantada por Kant, e, antes dele, pelos nominalistas, de saber se o que faço consiste em apreender o real em si mesmo ou se a mediação das minhas categorias mentais lhe atribui uma ordem cujo fundamento objectivo é indemonstrável. Não posso ignorar que as palavras não são as coisas, e que as minhas frases jamais ressuscitarão coisa alguma senão na minha imaginação ou na daqueles que me escutam. Perante esta dificuldade clássica da teoria do conhecimento, não tentarei resolvê-la com o recurso kantiano a um qualquer imperativo categórico de ordem moral, mas apenas com a evidência experimental, para não dizer emocional, daquilo a que só posso chamar a comunhão com a realidade. Quer dizer, a relação contemplativa com a realidade não me transmite apenas uma impressão de ordem, de cosmos e não de caos, mas também que ele se impõe na sua alteridade, na sua diferença radical face ao que eu sou, que se me impõe, digo, pelo que é e não em virtude de uma construção arbitrária. O caos é aparente, revela apenas uma face, esconde uma harmonia que é o fundamento do mundo. A sua cosmicidade, se o posso dizer, é a condição para a apreender como sedutor, e mais do que isso, como regenerador, como portador de vida e da salvação. Porque a apreensão do mundo como caos e a diluição no caos, que, como se sabe, é considerada regeneradora em todas as práticas iniciáticas, só o é, creio eu, como um momento que antecede a sua própria superação, e não como fim em si mesmo. É um ponto de passagem e não de chegada. Ora a revelação do Universo como cosmos resulta justamente da descoberta da palavra que o nomeia, como dizem todas as cosmogonias que de uma maneira ou de outra, atribuem ao Verbo a superação do caos.
A representação mental que permite o nascimento da História, é, portanto, um acto verbal que brota do reconhecimento da ordem no vasto campo da acção humana. Tem qualquer coisa de admirativo, de emotivo. A sedução desencadeia a palavra. A representação mental que conduz ao texto histórico resulta da apreensão da realidade como harmonia, e como harmonia dizível. Como se existisse um Verbo eterno, imanente na realidade, e que apenas espera ser reconhecido para se revelar através da nossa voz. Da comunhão com ele resultam todas as linguagens, tanto as poéticas como as científicas. Os textos que elas constroem são como que as diversas interpretações de uma mesma partitura. Como terão já reconhecido alguns dos meus ouvintes, inspiro-me aqui de ideias expressas pelos simbolistas, nomeadamente por Mallarmé, e que correspondem também a certas páginas fundamentais de Pessoa.
A referência a uma Palavra única, total, que traduz a unidade e a coerência de todo o Universo criado, e é ela própria como que o suporte da sua realidade, não exclui, antes pelo contrário, a produção da variedade infinita de palavras para a dizerem, no tempo e no espaço. Aquelas que eu, como historiador, tento pronunciar, brotam de uma experiência de carácter poético, apegar dos processos analíticos a que tenho de recorrer para traduzir a minha percepção.
Para mim, escrever sobre o passado e falar da História, é uma consequência directa da minha descoberta da sua estrutura complexa, tanto mais atraente quanto mais misteriosa, tanto mais sedutora quanto mais inesgotável na infinita variedade das suas harmonias escondidas». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.
Cortesia de Imprensa Universitária/JDACT