quarta-feira, 7 de março de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Isso, no entanto, contribuiu para que a casa fosse ganhando uma dimensão misteriosa, até porque era a maior casa da povoação, e o mistério é uma parte essencial da vida de uma pequena comunidade, em que todos precisam de fugir das misérias diárias e do conhecimento das fraquezas e grandezas recíprocas»

'Nu couché et voilé', Charles Adrien
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«A casa tinha uma porta que dava para a rua de terra batida, que era a Porta principal. Tinha outras portas, para ruas de pedra, ou para ruas já alcatroadas, mas o tempo encarregara-se de as empenar, impedindo que se voltassem a abrir. Era portanto aquela a única porta utilizada, e era por ali que entrava e saía toda a vida da casa, e também todo o tipo de gente que, por uma razão ou outra, ali ia, tinha de passar sob o arco de madeira trabalhada com a inscrição das iniciais do construtor cujo nome já ninguém sabia, confundindo essas iniciais com uma sigla misteriosa que, com o passar do tempo, ia dando origem a interpretações cada vez mais absurdas. Isso, no entanto, contribuiu para que a casa fosse ganhando uma dimensão misteriosa, até porque era a maior casa da povoação, e o mistério é uma parte essencial da vida de uma pequena comunidade, em que todos precisam de fugir das misérias diárias e do conhecimento das fraquezas e grandezas recíprocas.
Numa terra pequena, uma casa grande serve de esconjuro à efemeridade da vida. As suas paredes trazem um passado que nelas imprimiu as suas marcas, e dão a sensação de que podem resistir a todas as intempéries do tempo e da história. É, de certo modo, uma referência, que até pode servir para marcar encontros à sua porta. Tem, até, algo de secreto; e, nesta, esse segredo estava ligado à figura do Senhor, último herdeiro da casa, que regressara à aldeia apenas para tomar conta dos negócios de terras e gado, embora não pusesse nisso um empenho excessivo, preferindo manter a rotina feudal de receber as rendas, que ia gastando em viagens à cidade, onde deixara alguns hábitos de jogo e mulheres.

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Pouco se sabia da sua vida, a não ser que algo de grave se passou numa dessas viagens, que o levou a um internamento por algum tempo, para se tratar ao que disseram, de uma doença venérea, após o que se instalou definitivamente na aldeia, limitando os seus passeios a pequenas voltas pela região, a que era obrigado quando havia algumas decisões a tomar em relação a obras ou plantações que os caseiros lhe pediam.
A casa, de resto, nunca tivera muito movimento, a não ser o dos pássaros que faziam o ninho por cima da porta, o que irritava as mulheres que faziam a limpeza das pedras da entrada, mas não podiam fazer mais nada porque a superstição mandava que nos ninhos dos pássaros não se toca.
Em frente, tinha havido uma mercearia, com grandes portas de madeira, que estavam abertas de par em par, excepto durante os dias de Verão, em que o calor obrigava a que apenas ficassem entreabertas, deixando o interior numa obscuridade que fazia com que o visitante hesitasse em entrar; mas por essas portas quem entrava sem problemas eram as moscas, embora houvesse maneira de impedir que elas atormentassem as pessoas, pendurando nas traves do tecto fitas amarelas que depressa se transformavam num negro colar de insectos debatendo-se uns contra os outros numa última agonia. Por baixo, o Anarquista lia sempre a mesma página do jornal, que era a página dos anúncios, como se procurasse ume maneira de fugir dali, embora toda a gente soubesse que não havia saída nenhuma.

Cortesia de lepetitvert

Havia também a dona da Retrosaria, que estava na porta ao lado, e vinha sempre espreitar, quando ouvia uma voz na Loja, pondo a cabeça por entre os cortinados que escondiam o balcão da rua. Era uma mulher bonita, e talvez tivesse problemas porque era triste, e isso ainda mais se soube quando, um dia, apareceu pendurada de uma corda, e não teve enterro na igreja Porque o padre não abria a porta aos suicidas. Dizia-se que havia um túnel que passava por baixo da rua, ligando a casa do Senhor à Retrosaria, e que era por aí que ela passava, todas as noites, depois de fechar a loja, para se encontrar com o Senhor.
Houve até quem confirmasse que a vira descer por um alçapão, e esse testemunho foi usado para dar como verdade absoluta o que não passava de uma suspeita, que nem poderia ser verdade se se partisse do princípio de que os encontros se davam através desse túnel do qual, mais tarde, quando a rua foi aberta para fazer os esgotos, nunca apareceram vestígios, mas houve quem dissesse que isso era porque o túnel ainda estava mais fundo, e que talvez viesse do tempo dos mouros, o que era absurdo porque naquele lugar não havia quaisquer sinais de que alguma vez os mouros ali tivessem vivido.
Ao fim da tarde, juntavam-se naquela mercearia alguns homens, que passavam para uma sala onde havia uns bancos e uma mesa com uma garrafa de aguardente e uns copos de vidro grosso para a beber. Os homens sentavam-se nos bancos, e passavam o fim de tarde a discutir, em voz baixa, por forma a que nem o empregado da Loja, que ficava então a atender os clientes, os pudesse ouvir». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT