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O Ciclo do Dragão
«Nápoles toda de ouro beijada pelo mar cor de vinho, os torreões alvos do porto, o longo paredão do cais de pedra branca e, à esquerda, o farol idêntico, pela sua estrutura, aos palácios de França, do vale do Loire. Mais a norte, o castelo Novo onde tremulou o estandarte de Aragão, na torre sul, sob o céu azul quente da Itália.
Foi aqui, e por aqui, ainda não há muito tempo, em 1495, que o Rei Carlos, aquele que morreu no castelo de Amboise de um ridículo acidente, entrou, muito jovem, o seu rosto feio, esguio, triangular e pálido, então colorido pelo orgulho de a conquistar, na bela Nápoles trabalhada pelo tempo e a sua inesgotável memória, cidade que foi sempre uma das raras jóias da Coroa de Aragão e onde a população o recebeu com a manifesta alegria dos povos que, ingenuamente, acreditam sempre em libertadores.
No alto, naquela colina de perfil suave como um seio úbere que o sol aqueceu e bruniu, e que me recorda a paisagem das pinturas antigas ainda existentes em alguns subterrâneos de algumas velhas casas romanas, o Mosteiro de S. Martinho, belíssimo, demarcado no horizonte como um desenho.
A colina do Vómero. Do sopé, emergindo acima dos telhados da cidade e até ao edifício que me recorda um corpo adormecido aspirando a brisa que se evola do mar, como peregrinos encapuzados, a esta hora do entardecer, as frondosas copas das oliveiras e de várias outras espécies de árvores de fruto sobem em filas, numa procissão de sombras, que o Sol quase poente torna mais densas e longas, enquanto se começam a acender as luzes fracas nas casas da cidade e no sopé das outras quatro colinas que daqui avisto. Quantas cidades percorri eu e quantos portos toquei neste percurso que Deus me ordenou cumprir e o meu destino me auxiliou a sofrer? Cádis, Marselha, Génova, Florença também, de onde saíram meus antepassados, espartilhada nas suas muralhas, rodeada de olivedos com o seu rio azul, persistente e fugidio, cruzado pelas suas quatro pontes de grossos talha-mares, limitada pelas colinas azuis do seu horizonte esbatido como a tela de um pintor do Norte quando a adivinhamos ao longe pelo Outono? Puzzuoli, onde os ventos contrários me obrigaram a parar para, finalmente, atravessar a grande baía e acoitar-me à Prócida e vislumbrar, como um homem embriagado pela felicidade, aquelas formosas mulheres, das mais belas de Itália, bailarem naquela festa de casamento, junto ao enorme castelo de telhados flamejantes e onde as casas parecem rubis sob o sol?
Esqueci-me, nesse dia, dos balanços da galera mercantil onde, com uma bolsa de ouro, consegui a passagem, porque, apesar de tudo, antes assim que numa dessas embarcações pejadas de peregrinos, que os venezianos alugam mas detestam, já que me não fora possível um lugar, mesmo que pago com as sobras do vil metal que possuía, algo de melhor, num desses barcos redondos que percorrem o Mediterrâneo e o Atlântico, altos, mais arejados, largos, com uma reduzida tripulação e que facultam uma viagem mais cómoda e atraente.
Nápoles, como é magnífica! Nápoles! Um velho marinheiro que, como me confessou, nasceu em Pisa, aponta-me o Molo Angiolino que protege o porto e olha extasiado a colina verde de Vómero, onde eu também, ainda ao longe, do mar, centrei a minha atenção. A Cartuxa de São Martinho e, mais distante, no centro azul daquelas colinas, que a névoa começa a dissolver, o imponente Vesúvio.
Cortesia de diogotavar
Este porto, esta cidade de colinas, este branco que o sol doura e matiza, tudo isto me recorda a velha cidade onde nasci e que é a única do Atlântico que, batida pelos ventos que sopram dos confins do mundo e que descem de Albion ou vêm das rotas de Ocidente que desde o infante Henrique e Colombo e Cabral nos são conhecidas, possui esta luminosidade sublime, este tom repassado pela sabedoria do tempo, onde o grande mestre pintor que é Deus a debuxou numa tela fina como o éter e lhe concedeu a beleza serena que só detêm os sagrados lugares do passado, na rota dos mundos mortos, e onde, por breves instantes, sopra o Espírito: Lisboa. Assim, vista do Tejo, por breves momentos, apreendida por um dolorido olhar, entre o sonho e a vigília, que eu nunca mais verei e onde ficou tudo de mim. Este porto recorda-me toda a minha vida e todas as outras que se cruzavam com ela, comigo. Aquele dia de Sagração, o outro em que parti para Évora, aquele outro em que, pela derradeira vez, abracei Ruth e ainda o dia em que vi partir alguns dos meus para o Norte de África, para as ilhas, para as brumas cinzentas do Mar Tenebroso, e todas as crianças que, por ordem real, foram levadas para S. Tomé destinadas à futura colonização das novas terras, depois de transformadas em bons cristãos. Não recordo isso pelo facto em si, mas porque Ruth partiu também passado pouco tempo e a imagem daquele belo corpo inerte, que deitei no leito desfeito depois de lhe cerrar os olhos verdes que tinham perdido todo o reflexo da sua alma, imersa já na penumbra do perdão e do esquecimento, não mais me abandonou. Tudo isso faz parte da nossa vida e em todas elas existem fases, a do cisne com a consequente sagração, a do infortúnio, a da libertação final. Eu chamo-lhe Caminho. E no fim, o que fica é apenas o homem e o seu espírito no contacto directo consigo próprio, talvez com Deus, e a sua própria ânsia de verdade, como dizia Abdullah, esse velho médico hipocrático, que o acompanhará ‘até atingir a última noite do mundo, meu irmão’.
Por tudo isto me recordo de Lisboa e da raiz última da minha vida que, mal ou bem, tenha eu cumprido ou não o meu destino, ficou aí até que eu, em outra época ou tempo, na revolução dos astros, regresse de novo, quem sabe?». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT