Venda de escravos na costa africana
Museu de Arquitectura de Liége, 1989
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A todos aqueles que resistem à imposição de domínios, à violação de ideias e sentimentos, à perversão de princípios.
Reflexões sobre a escravidão e o tráfico negreiro
«No mundo colonial as condições de existência dos escravos eram piores do que na Europa. A vida humilhante, sempre atormentada por severos e desumanos castigos, a opressão e obediência excessiva, as privações contínuas transformaram muitas vezes a sua sujeição em revolta e desencadearam um clima de medo que se repercutiu numa maior agressividade de parte a parte. Este perigo não se fazia sentir tanto nas metrópoles, onde o regime de sujeição não era tão violento e a existência de um maior número de brancos afastava a hipótese de uma dominação da gente de cor. No entanto, a existência de escravos levantava aqui problemas de outra ordem: a ocupação dos serviços por mão-de-obra escrava em desfavor da população livre de baixa condição, o desprezo que daí resultava pelo trabalho, atitude que aliás também se fazia sentir na colónia, com a consequente miséria de uma larga faixa da população europeia. Esta situação contrastava com as necessidades de mão-de-obra do meio colonial e, por isso, a partir dos finais do século XVII, começaram a surgir na Europa medidas tendentes a regular a permanência dos escravos nas metrópoles e a desviar o tráfico negreiro para as colónias.
O estudo da escravidão e do tráfico deverá ser analisado tendo em consideração as diferentes realidades que compunham o espaço europeu e os espaços coloniais. E não apenas ao nível dos condicionalismos económicos, mas igualmente das formações sociais e dos ambientes psicológicos.
Pormenor do monumento a Sá da Bandeira, 1884
Largo de D. Luís em Lisboa
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O escravo não era só visto como uma simples propriedade, mas também como um inimigo que era necessário manter subjugado com mais ou menos terror, consoante as circunstâncias. Em Portugal, pelas determinações régias de 19 de Setembro de 1761 e de 2 de Janeiro de 1767, Pombal interditou o tráfico de negros e mulatos oriundos da América, África e Ásia para o reino, sendo proclamados livres todos aqueles que aqui fossem desembarcados. O próprio alvará de 19 de Setembro de 1761 apresentava explicitamente os motivos dessa orientação política ao referir como era nefasta a presença de um tão extraordinário número de escravos, que, fazendo nos domínios ultramarinos uma sensível falta, vinham aqui ocupar o lugar dos moços de servir.
Na segunda metade do século XVIII, o número de escravos existentes em Portugal era ainda significativo. E a sua condição, não sendo tão degradante como nas colónias, era todavia dura e humilhante. Um outro documento pombalino, o alvará com força de lei de 16 de Janeiro de 1773, denunciava a existência de pessoas ‘tão faltas de sentimentos de humanidade e, de religião’ que guardavam em suas casas escravas, “umas mais brancas do que elas, com os nomes de pretas, e de negras, outras mestiças, e outras verdadeiramente negras, para pela repreensível propagação delas perpetuarem os cativeiros”. Isto é, o tráfico para a metrópole tinha sido proibido, mas permanecia em vigor uma das mais terríveis justificações da escravidão: a hereditariedade da condição por via materna.
Com este alvará, Pombal atalhou a esta situação ao decretar que somente os escravos cujas mães ou avós fossem escravas deveriam permanecer no estado de escravidão, mas sem carácter hereditário.
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Aqueles cuja condição já vinha das bisavós ficariam livres, mesmo tendo suas mães e avós sido escravas. Independentemente destas determinações, a lei concedia a liberdade a todos os que nascessem posteriormente à sua publicação. Medida humanitária de cariz abolicionista, é certo, mas essencialmente estratégica que vem demonstrar que, independentemente dos sentimentos, só se era abolicionista quando as circunstâncias o permitiam e até onde o permitiam. Esta liberdade do ventre, proclamada por Pombal exclusivamente para Portugal continental, só veio a ser generalizada a todo o território em 1856, por decreto de 24 de Julho.
A partir da segunda década do século XVIII, tomou forma o movimento antiescravista. As atitudes de contestação tinham começado algum tempo antes em Inglaterra, no interior da seita religiosa dos Quakers. Rapidamente, porém, saíram do foro estritamente religioso e, aliadas à ideologia do século XVIII, tomaram uma dupla feição humanitária e política. A escravidão não era apenas um problema moral, mas também uma questão económica e política, com fortes implicações de ordem social e mental». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT