jdact
“Quanto ao Diabo, nunca um português acreditou nele. A emoção não permitiria”. In Fernando Pessoa, 1946.
«O carácter “eclesiástico” do teatro de Gil Vicente salta aos olhos do mais desprevenido leitor. Os assuntos laicos são nele minoritários e ainda aí se insinua uma visão das coisas a que é realmente impossível dar outro nome que ‘eclesiástica’, de homem de igreja ou seu costumeiro, tanto como de homem interessado em julgar e rir de toda uma sociedade segundo normas, ideias, hábitos mentais, vocabulário de ’clerc’. Todavia, esta evidência não impede toda uma tradição crítica de se agarrar às abas do gibão de Mestre Gil para o reivindicar como expoente de não sei que espírito racionalista, crítico e, santos céus, até ‘revolucionário’.
Como ‘todos’ os grandes autores cómicos (e Gil Vicente o foi) o autor do “Auto da Alma” era ‘naturalmente’ conservador. Menos do que Camões, todavia, que a época e certamente a situação pessoal eram de euforia, o que já não era o caso, nem da pessoa, nem do seu tempo épico. O milagre vicentino é o retardatário milagre medieval de uma sociedade organicamente homogénea, indiscutida, e que por isso podia livremente discutir-se. Como a numerosa coorte dos ideólogos que parece ter tomado Mestre Gil à sua conta se enganaram supondo ao mais que ortodoxo poeta da “Barca da Glória” intenções, subentendidos, ideias, qual delas a mais inquietante e heterodoxa que ele não teve, nem podia ter, nem ninguém teve à ‘sua volta’ entre nós. Nem sequer lhes aflora o que teria de inexplicável uma tal singularidade, se ela tivesse sido o que esses exegetas interessados na refecção da história à sua imagem, arbitrariamente supõem. A crítica que Lucian Febve fez de postulados semelhantes em relação ao famigerado ‘livre-pensamento’ de Rabelais é bem mais pertinente se a aplicarmos a Gil Vicente e à sua época.
Cortesia de bemsotto
As razões historiográficas que estruturam histórias e estudos literários de não pouca fama necessitam de uma revisão total. Para mal dos nossos pecados tal revisão é inútil esperá-la da outra coorte que partilha com os marxistas a seara da nossa Cultura. Estes mesmos são vítimas da óptica partidária do século XX e tomando a sério a heresia e o revolucionarismo de Mestre Gil pudicamente se especializam em ‘cobrin’ as vergonhas ideológicas e os deslizes de linguagem do ilustre autor.
Numa época tudo constitui sistema. O Portugal de Gil Vicente é ainda uma mediévica sociedade, bem estratificada, na qual todas as classes se disputam (sob o pano de fundo judaizante) a glória de uma vida eterna e de um pensamento ortodoxo sem fendas. A questão religiosa mal se põe, ou quando se puser, a resposta será óbvia. Bem sei que se evoca a sombra temerosa de Erasmo. Mas e para cometer um duplo contra-senso e fazer por seu turno do autor dos “Colóquios” o que ele não foi nem quis ser nunca. O Erasmo lido na Europa pré-luteriana não é o mesmo que o que se podia ler em Portugal na mesma época. A saúde ortodoxa nacional, dê-se-lhe a explicação que se quiser, é de um outro teor que a da França, da Alemanha e da livre Itália onde a Espanha mais facilmente se desnorteava.
Gil Vicente não é heterodoxo pela mesma razão por que nós não temos na sua época e nas anteriores qualquer coisa que de longe ou de perto se possa comparar à pintura profana dos Países Baixos e da Itália.
Não temos Quentinos Metzys, pintores de banqueiros que não existem e suas mulheres. Para já não falarmos do “nu” que será impossível na Península até Velasquez (e só de costas).
Referimo-nos à familiar pintura, de burguesa glorificação, ou à real glorificação que o retrato flamengo e italiano entronizam. Os nossos retratos ‘rezam’. Portugal era então uma sacristia imensa, mas nela reinava uma liberdade que nos parece escandalosa, como é sempre a dos sacristães, por estarmos fora dela sem afinal lhe termos jamais escapado». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.
Cortesia Gradiva/JDACT