terça-feira, 6 de março de 2012

Estudos sobre Artes Cénicas Asiáticas. João Soares Santos. «O discurso verbal poderá ser hoje entendido como uma evolução de um regime de gradual ajuste de condições, uma ordem de processos sensório-motores de orientação e de sustentação de ideias e significados»

jdact

O impulso antes da palavra
Muitas vezes invejamos os orientais pela sua sabedoria teatral, a qual permite ao actor transmitir a sua obra de arte viva, geração após geração: eles invejam no nosso teatro a sua capacidade de confrontar novos temas, de se manter actualizado e a flexibilidade que permite interpretações pessoais de textos tradicionais que muitas vezes possuem a energia de uma conquista formal e ideológica. Temos, portanto, de um lado histórias que são instáveis em todos os aspectos menos o da escrita; do outro, uma arte viva, profunda, capaz de ser transmitida e implicando todos os níveis físicos e mentais, tanto do actor como do espectador, mas ancorada em narrativas que estão para sempre antiquadas. De uma parte um teatro apoiado no logos. Na outra, um teatro que é acima de tudo bios.
«Se retrocedêssemos no estágio actual da linguagem humana e pretendêssemos definir a sua origem e primeiras articulações fonéticas, encontraríamos, como agente deste complexo sistema de símbolos, uma predisposição biológica. A linguagem, elemento fundamental nas pesquisas sobre os métodos de raciocínio de um povo e motor na determinação de padrões culturais, é um fenómeno secundário, expressa e resulta de uma actividade cognitiva condicionada.
O discurso verbal poderá ser hoje entendido como uma evolução de um regime de gradual ajuste de condições, uma ordem de processos sensório-motores de orientação e de sustentação de ideias e significados. Simultaneamente uma modelagem orgânica e representacional, desde o funcionamento dos mais pequenos músculos, órgãos ou neurónios até aos mecanismos globais de controlo, concentrados no cérebro. A representação de conceitos será o topo psicológico de uma hierarquia de conexões fisiológicas cuja antecedência histórica provavelmente partiu do gesto comunicativo, do corpo em acção.

Cortesia de estadao

Inicialmente os sons produzidos pelo ser humano não veiculavam sinais morfológica e semanticamente organizados. Antes de serem estruturados, teoricamente a qualquer som poderia corresponder qualquer sinal. Quando um determinado som passou por convenção a transmitir um determinado sinal, transformou-se num segmento, numa micro-unidade de um sistema de comunicação. Pronunciado com outros ruídos começou a transferir informações que serão descodificadas e memorizadas. O som feito sinal integra e participa numa dinâmica anatómica que termina na esfera cognitiva, na produção do pensamento. Os princípios gramaticais regulam o modo de envio da mensagem, das ideias, possibilitando as suas normas de combinação e de conjugação, eficácia e diversidade. A língua adapta-se às alterações culturais cronologicamente operadas em sociedades, acompanha o desenvolvimento tecnológico e o procedimento mental de selecção e de distinção do ser humano relativamente ao ambiente circundante. A linguagem oral certamente derivou de um estádio de indiferenciação. Oriunda presumivelmente da mímica, da gestualidade inerente a uma vontade de designar, do desejo de querer influenciar outrem para obter a concretização ou satisfação de uma necessidade, transitou depois para uma manifestação vocal.
O som como indício de um impulso que pretende despertar uma reacção, provém, talvez, da observação da natureza dos movimentos físicos dos outros seres humanos ou animais, da escuta e da imitação dos ruídos reflexos que emitem, de brincadeiras vocais, etc. Factor socializante, a linguagem hominídea, na sua etapa mais primordial, consistiu supostamente nos trejeitos faciais, nos movimentos dos membros, do corpo em geral. Acreditando na hipótese de uma origem cinética da linguagem, as vocalizações, posteriormente introduzidas, foram adquirindo gradual relevância.

Cortesia de senac

Através da repetição, da acentuação e de jogos rítmicos, de uma fase potencial pré-comunicativa, fortemente imposicionada pelo instinto, pela resposta emocional, a linguagem verbal semantiza-se e inibe, com o tempo, parte dessa exteriorização corporal de sinais concentrando a fonte de emissão no aparelho respiratório, nomeadamente em zonas como a cavidade bucal, nasal e faríngea. Substituindo antigos modelos de comunicação, com a palavra o ser humano estereotipou o seu comportamento. Cada conjugação de sons vai exprimir um significado e causar um efeito no destinatário.
Com a fala, o humano aprendeu a iludir, instruindo-se numa nova técnica de simular, de distanciar-se, de apropriar-se do mundo. A palavra é, por essência, artifício; a fala, como refere o etólogo David McNeill, é uma ‘acção vicariosa’. Esta consciência das palavras como astúcia comunicativa e obstáculo da faculdade de reflectir aparece tragicamente explícita na obra literária de Samuel Beckett. As palavras dizem apenas aquilo que é possível dizer. Exprimimo-nos através deste engenho que preserva a nossa existência comunicante, e assim social, tentando testemunhar aquilo que somos e transmitir a sua (nossa) própria limitação. Quando criou a palavra o ser humano descobriu um poderoso recurso. Esta invenção permitiu acalmar o temor por determinados fenómenos inexplicáveis. Com ela tornou-se possível o contacto com divindades ou entidades sobrenaturais. A prece e a oração são palavras especiais reservadas à invocação dos poderes dessas figuras ou forças superiores. A admitida voz do deus ou espírito, manifestando o seu raciocínio, exerce um efeito ordenador e orientador no comportamento humano, é o auxiliar que conduz o itinerário dos actos e ideias do ser humano na Terra. Fruto da inteligência e instrumento da sua alegada excelência, o humano reinventou o mundo com as palavras». In João Soares Santos, Estudos sobre Artes Cénicas Asiáticas, Fundação Oriente, 2000, ISBN-972-785-007-3. 

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT