«(…) Nu e Tina não eram felizes. Os
terrores que nós saboreávamos todos os dias eram os delas. Não confiávamos na luz
que incidia sobre as pedras, sobre os prédios, sobre os campos, sobre as pessoas
fora e dentro de casa. Pressentíamos-lhe os cantos negros, os sentimentos reprimidos
mas sempre quase a explodir. E atribuíamos a essas bocas escuras, às cavernas
que por trás delas se abriam sob os prédios do bairro, tudo aquilo que nos assustava
à luz do dia. Don Achille, por exemplo, não estava apenas em sua casa, no último
andar, mas também ali em baixo, uma aranha entre as aranhas, um rato entre os
ratos, uma forma que assumia todas as formas. Imaginava-o de boca aberta por causa
das compridas presas de animal, corpo de pedra vidrada e ervas venenosas, sempre
pronto para recolher num grande saco negro tudo o que deixávamos cair pelos cantos
soltos da rede. Esse saco era um aspecto fundamental de don Achille, tinha-o sempre
consigo, até em casa, e nele metia matéria viva e morta. Lila sabia que eu tinha
aquele medo, a minha boneca falava disso em voz alta. Por isso, logo no dia em que
trocámos de bonecas pela primeira vez sem combinar sequer, só com olhares e gestos,
ela, assim que lhe entreguei Tina, enfiou-a pela rede e deixou-a cair para o escuro.
Lila entrou na minha vida na primeira
classe e impressionou-me de imediato porque era muito má. Naquela turma éramos
todas um bocadinho más, mas só quando a professora Oliviero não conseguia
ver-nos. Ela, porém, era má sempre, pior do que os rapazes. Uma vez rasgou o
papel mata-borrão em pedacinhos, enfiou-os um a um no tinteiro e depois pôs-se a
pescá-los com o aparo e a atirá-los para cima de nós. Eu fui atingida duas
vezes no cabelo e uma vez na gola branca. A professora berrou como só ela sabia,
com uma voz de agulha que nos atemorizava, longa e pontiaguda, e mandou-a
imediatamente para o castigo, atrás do quadro. Lila não obedeceu, nem sequer
pareceu ter-se assustado, pois continuou a atirar bocados de mata-borrão ensopados
em tinta para todos os lados. Então a professora Oliviero, uma mulher pesadona
que nos parecia muito velha, embora devesse ter pouco mais de quarenta, desceu do
estrado ameaçando-a, tropeçou não se sabe bem em quê, não conseguiu equilibrar-se
e foi bater com a cara na quina de uma carteira. Ficou caída no chão como morta.
O que aconteceu logo a seguir não me recordo, lembro-me apenas do corpo imóvel da
professora, uma trouxa escura, e Lila a olhar para ela de cara séria.
Tenho na lembrança muitos
incidentes deste tipo. Vivíamos num mundo em que crianças e adultos se feriam
com frequência, as feridas sangravam, supuravam, e eles por vezes morriam. Uma das
filhas de dona Assunta. a vendedora de fruta e hortaliça, ferira-se com um prego
e morrera de tétano. O filho mais novo da senhora Spagnuolo morrera de garrotilho.
Um primo meu que tinha vinte anos foi uma manhã remover entulho e à noite estava
morto, esmagado, com sangue a sair-lhe dos ouvidos e da boca. O pai da minha mãe
trabalhava na construção de um edifício, caiu dele abaixo e morreu. O pai do senhor
Peluso não tinha um braço, o torno arrancara-lho à traição. A irmã de Giuseppina,
mulher do senhor Peluso, morrera de tuberculose aos vinte e dois anos. O filho adulto
de don Achille, nunca o vi mas parecia-me que me lembrava dele, fora para a
guerra e morrera duas vezes: primeiro, afogado no oceano Pacífico, e depois
comido pelos tubarões. Os da família Melchiorre tinham morrido todos abraçados,
a gritar de medo, debaixo de um bombardeamento. A velha dona Clorinda morrera
por respirar gás em vez de ar. Giannino, que andava na quarta quando nós andávamos
na primeira, um dia morreu porque encontrou uma bomba e mexeu-lhe. Luigina, com
quem tínhamos brincado no pátio, ou talvez não, era apenas um nome, morrera de tifo.
O nosso mundo era assim, cheio de palavras que matavam: o garrotilho, o tétano,
o tifo, o gás, a guerra, o torno, o entulho, o trabalho, o bombardeamento, a
bomba, a tuberculose, a supuração. Remeto para essas palavras e para aqueles
anos os muitos medos que me têm acompanhado toda a vida». In Elena Ferrante, A Amiga
Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, ISBN 978-989-641-479-5.
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