São
Francisco
«(…) Oh não! Estou
em Reno. Devia estar a apanhar o voo para Nova Iorque. Isto ainda não vos tinha
contado. A festa fora no sábado, no domingo deveria regressar para Nova Iorque,
depois de quatro anos de faculdade em São Francisco, porque na segunda-feira ia
começar a trabalhar na law firm do pai da Jen, em Manhattan. Sentei-me no único
centímetro da cama que não estava ocupado e pus as mãos na cabeça. Estou a ver
tudo a andar à roda, disse a Jen, abrindo os olhos e olhando para mim. Onde é
que nós estamos? Reno. Reno?!, disse, histérica. O que é que estamos aqui a
fazer?! Aposta. Perdemos. Nós. Oh my god, oh my god…, disse, levantando-se de
imediato. E o nosso voo para Nova Iorque? Perdemos. A Jen era minha amiga desde
muito pequena. Tínhamos decidido tirar o curso em São Francisco, para ficarmos
longe dos nossos pais. Tal como eu, na segunda-feira ela ia começar a trabalhar
na law firm do pai dela. Trabalharmos as duas naquele sítio era a única coisa
boa. Não me apetecia nada perder a liberdade ganha em São Francisco. E se
apanharmos um voo directo daqui?, perguntou. Não achas que as malas vão ficar
tristes se as deixarmos em São Francisco? Ela começou a andar de um lado para o
outro, muito depressa, e a falar ainda mais depressa. Com incontinência verbal,
foi relatando as várias hipóteses. Tentou, mas não saiu nada de jeito. A única
hipótese real é apanharmos um voo de Reno para São Francisco e depois um red
eye para Nova Iorque, afirmei.
A última coisa que
quero é ficar fechada dentro de um avião, disse a Jen, que continuava a andar
de um lado para o outro, muito rapidamente, acompanhada por uns uivos. Não
podia ser um lobo porque não há lobos dentro de quartos de hotel. Por isso, só
poderia ser. Pára de me dar pontapés. Eram as vozes das pessoas que estavam
deitadas no chão a reclamarem por estarem a ser pisadas. Os uivos entraram em
efeito dominó e, aos poucos, todas as pessoas começaram a acordar, enquanto
olhavam umas para as outras, pensando quem és tu? Onde é que eu estou? Estávamos
em piloto automático, quando ouvimos um estrondo na porta. Abram a porta! Nos
primeiros segundos, nenhum de nós foi capaz de dizer o que quer que fosse.
Talvez fossem as empregadas. Sim, era isso. Eram empregadas que tinham uma voz
muito grossa. Vá-se embora. Não precisamos do quarto limpo, afirmei. Mais
quatro batidelas na porta com imensa força. Abram já a porta!, voltou a dizer a
voz. O que é que quer?, perguntei, visto ser a única que já estava acordada há mais
tempo e tinha alguma capacidade para articular frases complexas. Somos da
polícia. Abra já a porta! Polícia?! Oh não. O que teríamos feito na noite
anterior? Lembrei-me logo das fotos. Surfando em cima de cadeiras, roubando
comida da cozinha. A Jen olhou para mim em pânico.
Subitamente, parecia estar na linha de partida da maratona de
Nova Iorque. Quase todas as pessoas que estavam deitadas no chão e na cama,
levantaram-se como se tivessem apanhado uma descarga eléctrica e foram a correr
para a casa de banho. Olhei para a Jen perguntando: o que é que se está a
passar? Abram a porta! Polícia! Na casa de banho, comecei a ouvir o autoclismo
ser descarregado várias vezes. A fila era grande e todos queriam desfazer-se de
qualquer coisa que tinham dentro dos bolsos. É a última vez que vos digo. Abram
a porta! Polícia! Sei o que estão aí a esconder. A Jen veio a correr ter comigo
e abraçou-se com força. Haxixe. É isso que estão a deitar na retrete. Oh não.
Achas que nos vão prender? Vamos contar até três. Se não abrirem a porta,
deitamo-la abaixo…1…, 2…, 3». In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?,
Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
Cortesia
EOLivro/JDACT