Constantinopla. Abril do ano de 1204
«(…) Tu não precisas de entender coisa
nenhuma, retorquiu, num tom algo exasperado, apenas tens de agir de acordo com o
que a Igreja te impuser! Não te cabe perguntar qual é a vontade do Senhor! Não era
minha intenção... Então basta de filosofias absurdas! A fé é a maior virtude de
que um homem se pode gabar! Tem fé e concentra-te em servir a Nosso Senhor Jesus
Cristo. Nada mais interessa. E ninguém te pede que penses! Vê se aprendes de uma
vez que a humildade, virtude muito necessária, te deve levar apenas a obedecer
ao que te ordena o teu superior! O silêncio daquele amanhecer nefasto
contrastava com o ruído dos dias anteriores, em que, em ambos os campos, se podia
ouvir o martelar constante dos que fabricavam as máquinas da morte. Não havia vento
quando os barcos zarparam da margem ocidental do Bósforo para cruzarem o Corno de
Ouro e se aproximarem o mais que lhes fosse possível da muralha que defendia a cidade.
Em poucas horas, os gritos dos homens que se viam diante de uma morte dolorosa,
as ordens dos comandos militares, que tentavam controlar as manobras das suas tropas,
o tilintar das espadas, o sibilar das flechas e o choque dos projécteis contra a
muralha envolveram todo o horizonte com o seu estridor.
Assisti
àquela batalha cruel do outro lado do Corno de Ouro, a salvo das flechas e dos artefactos
lançados pelos hereges gregos contra os bravos que levavam a Cruz gravada no
peito. Naquele dia, transformei-me num espectador mudo e cobarde de um tremendo
e real espectáculo de morte, destruição, sangue e sofrimento. Passadas horas de
uma angústia pesada, chegou a tarde e, com ela, a vitória dos latinos, que nos abriu
as portas da cidade. O abade Martín fez-nos sinal para que o seguíssemos para embarcarmos
num navio que nos levasse à outra margem. Já era possível aceder, com alguma segurança,
à Princesa das Cidades, como eu já tinha ouvido alguns chamarem à grandiosa
Constantinopla. Caminhámos pelas ruas, e o que nelas vi horrorizou-me tanto que
será impossível apagar essas imagens da minha memória até ao dia em que o
Senhor me chame à sua presença. Os latinos, os mesmos que, no dia anterior, tinham
recebido o sacramento da penitência, confessando os seus pecados, e tornado a hóstia
sagrada, os mesmos que levavam por bandeira a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
agiam como se uma loucura tornada fervorosa em nome da causa santa lhes tivesse
transtornado a consciência. A gula da pilhagem e a embriaguez do sangue e do
poder da espada estavam a levar ao saque total da cidade e ao massacre das
gentes que nela moravam. A crueldade mais brutal estendia-se a todo o lado; anciãos
assustados e indefesos caíam diante das patas dos cavalos, que lhes passavam por
cima, trucidando-lhes os corpos fracos e cansados; os filhos eram arrancados dos
braços das mães e atirados ao chão, perante o horror dos rostos maternais. Toda
a gente era vítima da barbárie e eu limitava-me a olhar atónito, absorvido pelo
horror, incapaz de impedir sequer uma daquelas mortes! Como que numa loucura colectiva,
foram profanados lugares sagrados, espalhados objectos de culto e espezinhadas
todas as imagens sagradas, sem escaparem, sequer, as imagens de Jesus Cristo e da
Sua Mãe Santíssima. Ao passar diante da Igreja de Santa Sofia, pude ver as bestas
de carga, ajoujadas com o saque, escorregando e caindo sobre o chão de mármore
da Casa de Deus por causa dos próprios excrementos, que sujavam e maculavam o
edifício mais glorioso da cristandade no Oriente». In Paloma Shanchez-Garnica, A
Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho, Saída de Emergência, 2012,
ISBN 978-989-637-411-2.
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