«(…) Partiam estafetas com ordens e avisos, e, entre
suspiros de cólera, as vendedeiras salgavam nos
alguidares de barro os tremoços, dispondo, nas mesas adornadas com um ramo de
cravos bravos da Índia, os copos embaciados onde vertiam limonadas e refrescos
de aguardente. Os foguetes explodiam, deixando no ar pompons de fumo alvo que
lentamente se deslocava e diluía. Quem é o homem?, disse Isidra. Fechara o
leque sobre o regaço, repuxando as suas mitenes de malha de seda preta. Olhava
Francisco Teixeira, viu como ele, esgotando os adversários, se detivera no
largo varrido, verificando a solidez do varapau, que varava o ar com silvos
prolongados. Depois, calmo, afastou-se por entre a multidão, e nem uma vez se
voltou. Isidra ficou-se na escada até tarde, batendo, absorta, com o leque nos
joelhos, fixando os copinhos de papel escarlate que balançavam suspensos por
barbantes e às vezes ardiam, despenhando-se as fagulhas sobre a praçazinha
coalhada de povo. Na sala, atrás de si, as senhoras bebericavam chá,
comunicando-se as receitas dos acepipes que provavam com suaves estalinhos de
língua, de aprovação, de entendimento, de gula. Eram mulheres que se
espartilhavam em barbas de baleia, sinistramente iguais, e que usavam ganchos
bafientas sobre os cabelos que pareciam brunidos, penteados com o único intuito
de ficarem arrumados. Vem para dentro, menina. Olha esse relento. Sobre os tremós cintilavam os pingentes dos candeeiros onde se
derretiam as velas. Um largo espelho de caixilho de esmalte
branco com filetes de oiro reflectia aquela reunião, os homens medonhos, com
coletes acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e da
política, as santas criaturas que cochichavam agravos de parentela e de criados,
empinando pelas ventas dedadas de rapé. Isidra entrou na sala, mordiscou uma
cavaca, chegou-se ao piano, onde apoiou o indicador, experimentando uma escala.
Vida estuporada!, disse. O fidalgo de Lago, negro como um moiro e que explicava
o loiro dos filhos pelo processo de lhes banhar a cabeça com cerveja quando
nasciam, observou-a de través. Odiava os de Borba, parentes seus, rivais na
opulência das casas, na excentricidade, nas espaventosas histórias de cavalos e
de mulheres. Famoso ninho que tais pegas dá, falou, para si, como costumava
dizer, com essa espécie de espírito que era como um atributo da sua cólera.
Isidra captou a frase, sem a ouvir. Quando, logo depois, ele lhe perguntou, com
um ressaibo de velha galantaria, quase lânguido, se ela gostava de versos,
Isidra disse-lhe, com uma arrogância fria, sem mesmo o olhar: versos? Meta-os
pelo rabinho acima… O de Lago passou a temê-la, o que, dizia Isidra, era muito
melhor do que se a respeitasse. Caprichou a moça nos seus amores com Francisco Teixeira.
Era fogosa e indomável, e, passados os primeiros arroubos da conquista, ele
fatigou-se dos seus repentes de despeito, das suas juras que previam desagravos de
traições, das suas corridas pela quinta, que ela atravessava noite alta para
comparecer aos encontros, embuçada numa mantilha de renda de lã negra, os
cabelos escorrendo-lhe pelas costas, pesados, trazendo enredadas as gavinhas
secas que se desprendiam dos lódãos. Ela não o amava, apenas se lhe entregava
por desafio ao nome que comprometia, pois à vertigem da sua queda sucedera a
preocupação pelo seu orgulho. Francisco Teixeira enfadou-se depressa daquele
temperamento tão viril, daquela voz ferina e fria que lhe impunha ordens e que,
no fim de contas, o desfrutava. Gostava das mulheres submissas, mansas, que o
admirassem sem jamais adquirirem a confiança de especificar, decompor,
calcular, essa admiração. Mas Isidra ia ser mãe, e ele receava-a. Talvez para
evitar a tentação daquela imperiosa criatura cujos ardores, cujos olhares
terríveis o venciam e cuja fortuna lhe parecia um subsídio notável para uma
vida de camarilha com arruaceiros e ciganas, ele casou precipitadamente com
Maria. Esperava manter secreto este passo até que a história de Isidra chegasse
a um natural epílogo; ou, possivelmente, preferia não encarar de frente
qualquer solução, e o facto de se ligar irremediavelmente a Maria representasse
um golpe de defesa que corrigiria muitos dos desvarios a que se sabia sujeito.
Este traço do seu carácter transmitiu-se depois a quase todos os filhos, e
podia definir-se pelo estilo hamletiano, o choco de indecisão, a cobardia da violência, que se resgatam de súbito com um acto que
transcende toda a razão». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954,
Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.
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