São
Francisco
«(…) Mas o que é
isso do Burning Man? perguntou a Jen pela 543.ª vez desde que saíramos do
quarto. É a coisa mais fabulosa do mundo. É uma festa no meio do deserto. Vocês
nunca viram nada assim. Vai mudar por completo a vossa vida. Vamos! A cada
segundo que passava, eu tinha a certeza de que, no futuro, nós iríamos ser
ensinados nas escolas. Não como o grupo de amigos que num ajuntamento, numa
noite em São Francisco descobriram a cura para o cancro, unhas encravadas ou
alopécia, mas sim como um exemplo vivo de como o álcool e os pensamentos
racionais são inimigos de morte. Claro que não vamos para lado nenhum, disse a
Jen. Temos de estar em Nova Iorque. Precisamos é de ir já para São Francisco. E
foi o que fizemos. Eu, a Jen, o condutor da carrinha que me disse o seu nome
várias vezes, mas que na minha cabeça continuou sempre a ser o condutor da
carrinha, o Brian, o Justin e o Tim, dois amigos nossos. Os outros ficaram por
Reno, a dormir, porque estavam tão ressacados que só queriam descansar. Mais
uma prova de que a nossa festa tinha sido épica e que provavelmente daqui a uns
anos seria construída uma estátua de cera em sua homenagem e posta no museu da
cera em Londres. Assim, lá regressámos os cinco a São Francisco. Na minha
cabeça, a viagem foi extremamente rápida. Cinco minutos. Na realidade, foram
duas horas. É bom o sono tomar conta do nosso corpo, em viagens. Estamos a
chegar. Acorda!, avisou o meu corpo, ao sentir o carro parar e arrancar várias
vezes. Tínhamos chegado a São Francisco. Abri os olhos e senti que estava
dentro de um sonho em que tenho a noção de que é um sonho, mas do qual não
consigo acordar. Estava à espera de ver carros e sinais de trânsito. Mas, à
nossa volta, apenas deserto. Seria possível que durante a madrugada tivesse
havido um holocausto nuclear e São Francisco arrasada por uma bomba?
Acorda, Alex!
Acorda!, pensei para mim várias vezes. Mas eu sentia a trepidação do carro a
parar e, arrancar. Os sonhos não têm cheiro nem vibração. Isso só poderia
querer dizer uma coisa. Jen, acorda! Já!, ordenei, enquanto a abanava em modo
martelo pneumático. O que é? Já chegámos? Olha lá para fora. Fez o que lhe
mandei, olhou, deserto, olhou para mim, para o relógio. Oh não! Onde é que
estamos?, perguntou. zzzzz …, ronc …zzzzz
esta foi a resposta do condutor da carrinha, esta foi a resposta do Brian, do
Justin e do Tim. Estávamos a chegar ao Burning Man. De imediato, vi uma mão passar
na minha frente e dar um estalo no ombro do Brian, que não acordou. Talvez
estivesse em coma porque também não acordou com os três murros seguintes.
Porque é que nos mentiste?, gritou-lhe a Jen ao ouvido. Só aí abriu os olhos.
Já chegámos? Não, não chegámos. Porque é que disseste que íamos para São
Francisco? Eu tenho de estar hoje em Nova Iorque. A Jen estava entre o
histérica e o realmente histérica. Ela é uma obsessiva compulsiva e quando
perde o controlo das situações, fica completamente fora de si.
Relaxa-te. Vais adorar, disse o Brian. A mim também me apeteceu
bater-lhes por nos terem mentido mas, naquele dia, era impossível regressarmos
a Nova Iorque. Quando chegássemos ao Burning Man, tentaria arranjar alguém que
nos desse boleia até Reno, de onde apanharíamos voo para São Francisco. Iríamos
para Manhattan, segunda-feira muito cedo, chegando ao trabalho a tempo. Perdemos
avião. Chegamos amanhã. Estarei a tempo. Sorry. Xoxo. Este foi o sms que
enviei ao pai da Jen pouco tempo antes de ficar completamente sem rede no
telemóvel. Ao olhar pela janela, não consegui deixar de me lembrar da madrugada
anterior. Apenas pequenos flashes entraram na minha memória. Mas todos eles eram
acolhedores. Algo de maravilhoso tinha-se passado há poucas horas, mas eu não
sabia o quê. Lembras-te de alguma coisa desta madrugada?, perguntei à Jen, que
ainda respirava com a intensidade de uma leoa em modo de caça. Nada. Porquê? Tirei
o iPhone, mostrei-lhe as fotografias e disse: acho que me apaixonei e não sei
quem ele é. Os meus seis dias seguintes misturaram-se uns nos outros e é
bastante difícil dizer o que aconteceu em cada um deles. Para mim, o Burning
Man foi uma experiência contínua de 150 horas. Se fiquei lá sete dias, acredito
que devam estar a pensar: então e Nova Iorque?» In Francisco
Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
Cortesia
EOLivro/JDACT