«(…) Porém, Maria precipitou
aquele enredo, escapulindo-se de casa, para reclamar o seu lugar no novo lar
que lhe competia. Não recebeu aplausos por isso, se bem que Francisco Teixeira
não resistisse a aceitá-la com honras de noivado. Ele desacompanhava-a muito,
deixava-a sozinha na casa, que ela percorria vagarosamente, empunhando a
candeia, cuja luz vacilante aplicava nos recantos, no patamar da adega, onde se
situavam as talhas do azeite, sobre calços de vimieiro. Se ele não chegava, deitava-se sem cear; se
ele vinha e dizia, com uma voz acobardada: já comi, Maria ia lançar o seu caldo
no bocal de madeira esbeiçado de lavagens e que comunicava com a pia dos
porcos, em baixo, sob a cozinha que estava em construção. Porque a casa tinha
totalmente ardido. Não restava um tabique, um fio de bragal; o fogo apenas
poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinham rolado sobre os charcos
do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo que acorria com escudelas
de água e cântaros que pareciam pairar magicamente à cabeça das mulheres.
Acontecera pouco tempo depois da chegada de Maria. Ela sentara-se, exausta, na
velha mó de lagar de azeite que estava meio tombada na margem da eira, e olhara
os escombros donde o fumo subia misturando-se com a névoa da madrugada. Tinha
apenas uma saia mal acolchetada sobre a camisa, e tiritava. Os moços moviam-se à sua frente,
enfarruscados pelo travejamento que desabara e sobre o qual pulavam, e que
ardia ainda com um serpear de lume no cerne seco; Narcisa Soqueira, vizinha
muito afecta à casa da Vessada, chorava, cirandando, seminua, um ombro
esquálido aparecendo pelos rasgões do velho chambre.
Ah, mulher, mulher! Isto foi a amiga do teu Chico, que é
fêmea que o diabo enjeitava, disse-lhe, muito sufocada de aflição. Cantés,
murmurou Maria. E voltou o rosto das paredes calcinadas, junto das quais a
grande meda de palha centeia se consumira, ficando apenas a armação de ferro
onde a velha pintura escamara, derretendo em gotas vermelhas sobre as lajes.
Francisco Teixeira não voltara ainda. E ali estava aquela jovem mulher, cujas
feições contraídas, porém, frias, se desenhavam na esverdeada luz da madrugada;
não confiava uma emoção à turba que a rodeava, que ia e vinha, num afadigado
fervor de auxílio, que se aproximava na timidez daquela dor que não sabia como
aliviar, e se afastava sem ter proferido senão palavras bruscas e banais,
vexada pela própria impotência, desejando apenas distrair-se da desgraça que
não podia vencer. Maria não chorava. Com a palma da mão arrepiava às vezes os
cabelos frisados das fontes e que lhe descaíam sobre os olhos; o seu coração
estava fechado, porém na expectativa de alguma coisa que nele renovasse a felicidade,
pois ela pertencia a essa casta rara e invencível dos que, a par da mais crua
teoria do pessimismo, se mantêm fiéis à esperança, e que mesmo na morte não
sucumbem. Francisco Teixeira veio então, sem se apressar muito em se chegar,
alisando-lhe as pregas do xaile, como se, com esse gesto humilde e repetido,
quisesse definir um arrependimento.
Eu tinha pensado já fazer umas obras..., disse. Ainda bem
que estou aqui para vigiar isso, contestou Maria. O seu tom possuía a nota irónica
que nela testemunhava bom humor e generosidade. As contas estavam saldadas.
Assim, ela confessava que o amava através de todos os incidentes e catástrofes,
todos os esquecimentos e abandonos. Morreria muito velha e, com a idade, a
mente havia de se debilitar, provocando-lhe arrazoados vagos, atropeladas
recordações, esse viver retrospectivo cheio de visões passadas, de factos e
pessoas mortas. Mas o seu homem estava sempre presente junto dela, vivendo as
suas seduções, fazendo-a
vibrar em cuidados e penas, como quando ela era jovem e se entregava às suas
íntimas batalhas de cólera e de perdão. Que culpa tinha ele de ser bonito?,
dizia, tomada duma filosofia gracejadora e doce. E, avistando da janela o filho
que tomava o caminho dos lameiros, num dia outoniço em que chovia, alarmava-se,
julgando que era Francisco Teixeira que partia desprevenido de abafos. Vai-se
molhar todo, o meu Chico. Levem-lhe um capote, porque se vai molhar. No
entanto, havia quarenta
anos que ele tinha morrido». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água,
2017, ISBN 978-989-641-747-5.
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