O
reino precisava mais do que um homem bonito
«(…) Chegava agora ao poder um rei
mais brando, o oposto do pai, deixando aos portugueses grandes interrogações,
mas também justa esperança. No entanto, desconfiavam. Se a formosura não lhe trazia
competência para reinar, o facto de ser bom caçador também não descansava o povo.
Dizem que na caça matava tudo quanto se mexesse, até pequenas aves, como se ao abater
indefesos animais fosse a antecâmara de uma batalha. Para além de tudo isto, Fernando
I ainda era notável no manejo da espada, um reconhecimento que os seus habituais
companheiros de torneios e adestramento invejavam, e agora sim, rei que se preze,
deveria espadeirar com habilidade. Havia no entanto um outro factor que não se ajustava
ao que um rei deveria transparecer para os seus súbditos. Era um homem muito bonito,
vaidoso e elegante, tudo aspectos que não ligavam muito bem com a governação. Para
municiar a sua líbido, Fernando I dispunha de uma despensa particular onde se abastecia
de jovens donas (mulher que conhece varão, não virgem) da nobreza. Mas será pecado
ser namoradeiro? Um bom rer não podia ser amador de mulheres e achegador a elas,
e ao mesmo tempo governar com acerto o reino? - Então não pode?!, perguntava e afirmava
a belíssima Almara. Eu que o diga! Que sabes tu disso, rapariga?, interveio a patroa,
Mariamem, desconhecendo outras virtudes da sua menina de estimação. Ó patroa, então
vossemecê não conhece os homens que entram pela porta do quintal? É tudo gente
de seu, senhora. Então não pode?! Saem daqui mais espertos e corajosos do que quando
entraram. Quem me dera a mim deitar-me com o nosso rei. A alma até lhe crescia,
digo-lhe eu! Sim, está bem, vai à tua vida. Não sabes quem cá vem hoje? Reza, filha,
benze-te que ele logo te absolve.
Do modo e da força física de Fernando
I ninguém duvidava. Mas seria ele arrojado? Teria dentro de si a coragem que parecia
sobrar enquanto combatia sem inimigos e caçava ajudado por dezenas de
falcoeiros? Diante de guerreiros de verdade, o rei daria boa conta de si? É que
há diferença entre a condescendência de um companheiro de armas e o olhar furibundo
de um adversário disposto a não se deixar matar. São coisas radicalmente diversas,
e o rei, até então, não fizera prova de que seria capaz de cortar a direito, motivar-se
com o espargir do sangue dos belatores (os que combatem, oratores, os
que oram ou rezam, laboratores, os que trabalham) enquanto esquartejava braços e
abria cabeças. Tudo se veio a revelar quando o rei Fernando, em 1369, influenciado
por aduladores e oportunistas, decidiu invadir a Galiza. Sabem o que vos digo?,
questionou o almocreve para os que estavam como ele a refrescar a garganta na taberna
de Mariamem. Este rei ainda nos vai fazer pagar caro as suas aventuras castelhanas.
Não sejas dramático, Eliel, contemporizou Fernão Vasques, o homem que ganhava fortunas
a fazer fatos para el-rei.
Olha quem fala! Vê-se logo que ficas
sentadinho a alinhavar os tabardos de sua majestade. A ti não te custa, não. Cá
o almocreve, que mate o corpo atrás das cavalgaduras por esses caminhos afora. Tão
sossegados que el-rei Pedro I nos trazia, vem este agora armado em galego a querer
o que é dos outros. Depois, impaciente, pôs-se a protestar contra o taberneiro.
Ó Justo, vê lá se me fazes justiça, porra! Já posso ir eu ou quê? Nah! Hoje a Almara
não é para os teus beiços. Então é p’rós beiços de quem? Oh, oh, tens de
adivinhar. Mas uma coisa te asseguro, não vais vê-la de certeza. Os fregueses da
taberna do Justo Lourenço e de Mariamem riam-se das alarvidades que trocavam, cabeças
de pouco pensar, entregues a duas preocupações fundamentais: o desejo de um pouco
de divertimento e a guerra que daria os seus passos no outro dia. Por que razão
ia este simpático rei entrar em uma guerra de sucesso duvidoso? Por uma
legítima necessidade de vingança? Henrique de Trastâmara, o soberano de Castela,
matara-lhe o primo Pedro para se apoderar do poder, ia ele agora, cavaleiro justiceiro,
pôr o outro na ordem. E, neste tempo, um primo valia o quê? O desassossego de milhares
de portugueses? Nem aos irmãos era dado esse privilégio, quanto mais aos primos».
In
Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-344-8.
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