São
Francisco
«(…) Fui a correr
para a porta. Abri-a. À minha frente, estava um polícia. Mas seria um polícia
de praia? Um detective à paisana? Esfreguei os olhos com força, porque de
certeza que ainda havia vestígios de bebida a habitar o meu corpo. Era um
polícia em tronco nu. Vem comigo, já!, disse o polícia, com um bafo que poderia
causar bebedeira a dez metros de distância. O que é que eu fiz? Ele entrou
rapidamente dentro do quarto, deitou para cima da cama o boné de polícia, o
coldre e os óculos escuros. Vestiu uma T-shirt que estava no chão. Todos os
meus roommates olhavam para ele sem perceberem o que se estava a passar. Ufff,
pelo menos eu não era a única. Pedi para o meu cérebro me dar uma ajuda e
tentar decifrar o que se estava ali a passar. Entrei em modo CSI: Alex e
cheguei à seguinte conclusão: O polícia chamava-se Brian e não era polícia na
realidade. Era o dono da casa onde decorreu a festa em São Francisco. Fazia
parte da minha equipa e, como perdeu, veio connosco. Por algum motivo estranho,
inexplicável ou até mesmo paranormal, durante a madrugada, arranjara uma farda
de polícia, mas acabou por ficar sem a camisa. Para além de tudo isso, num dos
corredores do hotel, encontrou um apostador que lhe fez uma proposta. Queres fazer
uma aposta no Black Jack? Se o Brian perdesse, tinha de lhe pagar 10 mil
dólares. Se o apostador perdesse, dava-lhe cinco bilhetes para o Burning Man.
Então, regressou de imediato ao quarto, para ir buscar a T-shirt, porque não
poderia jogar vestido de polícia falso. Como se tinha esquecido de levar a
chave do quarto, achou que seria divertido acordar-nos a dizer que era da
polícia. Ele sabia que havia muito haxixe lá dentro. Ok! Confesso, não foi a
CSI: Alex que descobriu tudo isto. Foi o Brian que me contou enquanto me
arrastava pelos corredores do hotel para eu ir com ele. A cada três palavras,
ele dizia que eu seria a musa da sorte dele e que por isso tinha de
acompanhá-lo. Uma musa despenteada, com a roupa amarrotada e com os olhos de um
vermelho vivo. Mas, apesar disso, musa. Que a nossa noite sirva de exemplo a
todos de que beber é mau e pode provocar estranhos efeitos secundários. Atrás
de nós, a Jen não parava de fazer perguntas: o que é um Burning Man?, Quem é
que vai ser queimado? A única resposta que ele conseguia articular era A Alex é
a minha musa, vamos depressa.
Entrámos no casino e fomos de imediato para uma mesa de Black
Jack onde estava um bonsai humano, gordo e rodeado por um harém pessoal de
raparigas vestidas como se fossem a Princesa Leia n’O Regresso de Jedi. Deseja-me
sorte, ordenou-me o Brian. Desejo-te sorte, disse, sem convicção, como poderia
ter dito que o céu é azul ou a água é molhada. E lá começaram a jogar. Como não
percebo nada de Black Jack e o meu nível de concentração ainda estava
equivalente ao de uma criança hiperactiva de cinco anos, comecei a olhar à
volta, atraída pelas luzes das máquinas na sala. Aquela era a sala onde eu
tinha tirado fotografias com o homem mistério. Quem seria? O que teríamos feito
durante a madrugada? Como era raríssimo beber e nunca o tinha feito naquelas
quantidades, a falta de memória era algo completamente novo para mim. Por isso,
cheguei mesmo a pensar E se eu estou com ataque de amnésia há meses ou até
talvez anos, e o homem mistério é o meu namorado? Se calhar estou neste estado
há dez anos ou até mais. Os meus pensamentos foram abalroados por berros muito
altos e rapidamente entraram em modo de hibernação. Não eram berros de
irritação, frustração ou de uma luta de gladiadores. Eram berros de alegria. Ganhei!
Ganhámos! Foste a minha musa!, disse-me o polícia Brian à paisana enquanto se
abraçava a mim e à Jen. Fiquei contente com os meus poderes e o passo seguinte
seria convidarem-me para ser a próxima Ellen e ter um daytime talk show. Podia
ter esboçado um sorriso e partilhado a alegria do Brian mas, naquele momento,
tinha uma coisa mais importante a fazer. Água e comida. Estava cheia de sede e
esfomeada. Os deuses do álcool estavam a enviar-me a factura. Vocês vêm comigo,
disse o Brian, a olhar com muita intensidade para mim e para a Jen. Vamos onde?,
perguntei, tendo uma premonição que não seria beber água ou almoçar. Vamos ao
Burning Man!» In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora
Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
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