A inquisição (maldita) e os meandros da
espionagem. 1321
«(…) Todavia, reconheci
instantaneamente a voz de Anseim Guiraud, um dos cónegos, perguntar por mim. E
quando o meu aprendiz respondeu que me iria chamar, outra voz emergiu: uma voz
com um sotaque catalão. Diz ao teu senhor que ele deve vir imediatamente, sob
pena de excomunhão, declarou a voz. Agrada-me dizer que as minhas capacidades
ainda não desertaram por completo. Os meus membros moveram-se mais rapidamente do
que os pensamentos, pelo que me apressei a trancar a porta que separa a cave da
oficina. Um momento, se fizer favor!, declarei vivamente, enquanto procurava a
carta do meu senhor. Por sorte, eu estava na mesma sala em que ela fica normalmente
escondida e precisei unicamente de mover um barril e erguer a laje. Permita-me apenas
que pendure esta pele!, disse eu. Ao olhar para aquele barril, alguém poderia
perguntar-se se eu conseguiria chegar a erguê-lo sequer. Mas ele tinha sido
construído com um fundo falso, bem alto e próximo da abertura; apesar de parecer
estar cheio de água de cal, ele contém apenas a quantidade que um balde comportaria.
Consequentemente, movê-lo é uma questão de instantes, ainda que eu seja um homem
pequeno e já não esteja na flor da idade. O catalão ainda mal tinha proferido o
seu protesto quando eu já estava a destrancar a porta, com a carta colocada em
segurança por entre as roupas e o barril de volta à sua localização habitual.
Oh, disse o catalão, quando surgi
à sua frente. És Helié Seguier, o fabricante de pergaminhos? Sou, foi a minha resposta.
Então és esperado na Torre do Capitólio, declarou o catalão, que tinha sido em
outros tempos negociante de velas, ou então tanoeiro, a julgar pelas pequenas
marcas de queimaduras que tinha na face e nas mãos. Apercebi-me de mais cicatrizes,
uma em cada pulso: cicatrizes de algemas. Já estou familiarizado com este tipo
de marcas. Tão claras quanto qualquer inscrição feita num registo de sentenças,
elas revelavam-me que o catalão era um núncio, ou mensageiro, ao serviço do seu
anterior carcereiro. Tratava-se de um herege reformado transformado em lacaio
inquisitorial. Mas eu era-lhe estranho. E estava grato por isso. Isto é uma
carta de convocatória formal enviada pelo irmão Jean Beaune, o inquisidor de
Carcassonne, explicou o cónego, estendendo-me um documento composto em latim.
Uma vez que não sei ler latim, devolvia-a no mesmo instante. Como vês, ela traz
o seu selo. Devias avisar a tua esposa e vir sem demora, disse o catalão, lançando
um olhar para o meu aprendiz, que é apenas um rapaz.
Não tenho esposa. Ou filhos, rebati,
antes de me virar para o jovem Martin. Devo confessar que ele parecia estar tão
assustado quanto qualquer filho ficaria ao ver o seu pai ser preso. Porque eu
tinha ganho a sua lealdade por meio de um expediente muito simples». In
Catherine Jinks, O Oficial Secreto, Confissões de um espião do inquisidor,
2006, tradução de Tiago Marques, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-251-609-9.
Cortesia de BertrandE/JDACT