«(…) Com uma tigela de açorda na mão e de rosto coberto por um
véu azul-celeste, Aischa dirigia-se ao casebre de Abdalah, que ficava encostado
à muralha, perto da bâb al-khawkha, a Porta situada nas imediações da muralha interior
da alcáçova e que abria para o arrabalde ocidental. Abdalah cegara totalmente e sentia-se tão fraco, que raramente
deixava o leito. Lá chegada, Aischa abriu a porta e entrou na única divisão do
casebre de madeira. Vieste outra vez, meu anjo?, perguntou Abdalah do seu
catre, estendendo-lhe as mãos, que ela afagou nas suas. Alá o Misericordioso
manda um anjo alimentar-me! Deixa-me aquecer-te a açorda. Depois de se livrar
do véu, a moça sentou-se num mocho em frente à lareira. Com uma tenaz, espalhou
as brasas e pousou a tigela de barro sobre elas. O dia do Juízo Final
aproxima-se, balbuciou Abdalah. Alá o Sublime vai julgar entre os vivos e os
mortos. Eu estou preparado. Aischa arrepiou-se. Irei ao encontro de meu pai,
prosseguiu o ancião, com um sorriso nos lábios. E juntos percorreremos as ruas
da Qurtuba antiga, onde viviam os sábios e os ricos em ruas iluminadas durante
toda a noite, onde se tecia seda com fios de ouro, onde se manufacturavam
baixelas de ouro e prata...
Enquanto
ele assim pairava e a açorda aquecia, os pensamentos de Aischa tornaram a concentrar-se
na história que o irmão Rashid lhe tinha contado: no dia em que os cristãos
descobriram a grande matmúrâ, um dos
cruzados aproximara-se sozinho do esteiro, a fim de lavar as mãos e a cara!
Rashid e os seus companheiros, por sobre as muralhas, nem queriam acreditar no
que viam. Alguns estiveram mesmo prestes a disparar as suas setas. Mas a calma
e a coragem que o maju demonstrara, acabara por lhe salvar a vida. Ninguém se
atreveu a disparar sobre um homem mal armado e que, pelo menos naquela altura,
não mostrara qualquer instinto agressivo. Limitaram-se a observá-lo. Ali ficou
ele, dissera Rashid, momentos infinitos, com os olhos fixos na Porta Férrea,
até a água da maré cheia lhe chegar aos joelhos. Os cabelos compridos
brilhavam-lhe como ouro ao sol! Estas palavras teimavam em não sair da cabeça
de Aischa. Perturbavam-na tanto, que chegou a sonhar que havia subido às
muralhas e deparado com a figura do estrangeiro de cabelos de ouro e as pernas
enfiadas na água. E mal acordou, vieram-lhe as palavras da mãe à ideia: irás
pertencer a um cruzado e vós os dois devereis guardar a cruz...
O
sibilar de gotas de açorda fervente caindo sobre as brasas tirou-a daquele
torpor. Com a ajuda de um farrapo, pegou na tigela e, depois de pôr uma segunda
almofada atrás das costas de Abdalah, sentou-se sobre o catre e ajudou-o a comer. Entre
colheradas, ele continuava a balbuciar sobre o fim do mundo e o tribunal de
Alá. A açorda já estava quase no fim, quando ela notou uma excitação fora do
comum na cidade. Cobriu-se de novo com o véu, chegou-se à porta do casebre e
viu guerreiros que se precipitavam sobre o lanço de escadas que, junto à bâb
al-khawkha, conduzia ao adarve. Do lado de fora das muralhas, vindos do
arrabalde, ouviam-se gritos. Seria um ataque dos cristãos? E o que haveria ela
de fazer? Abrigar-se no casebre? A periclitante construção de madeira não
oferecia grande protecção, o melhor era fugir dali. Mas..., deveria deixar
Abdalah sozinho? Aproximou-se dele e perguntou-lhe: consegues levantar-te com a
minha ajuda? Desconfio que os cristãos abriram as hostilidades e estarias mais
seguro em minha casa. Viu perplexa que Abdalah sorria e não fazia o mínimo
esforço para deixar a enxerga. A que é que achas graça?, inquiriu. Não temos
nada a temer. Como não? Tu és um anjo descido dos céus. E eu não tenho medo do
Juízo Final. Por Alá, o que estás para aí a dizer? Peço-te que te levantes!
Puxava-o pelos braços, mas não adiantava. Sozinha, seria incapaz de o arrancar
dali. Resolveu ir procurar ajuda e tornou a cobrir-se com o véu azul-celeste. Os
soldados que enchiam as ruas não lhe prestavam atenção, tão ansiosos estavam em
alcançar o adarve ocidental. Alguns deixavam mesmo os seus postos noutros
pontos da cidade. Aischa sentiu uma curiosidade enorme de ir ver o que se
passava, mas não se atrevia. O melhor era mesmo regressar a casa. Abdalah era
conhecido em toda a cidade e, se corresse perigo no seu casebre, alguém haveria
de... Aischa?! Deu meia-volta e, ao deparar com o seu noivo Amir, o coração
disparou-se-lhe. Amir ficava tão garboso na sua cota de malha, de espada à
cinta, o elmo com protecção nasal e a besta na mão. Ele era até conhecido pela
sua pontaria. Amir estava ainda hesitante, pois o véu tapava a cara da moça: és
mesmo tu Aischa? Que estás aqui a fazer? Pensei que as mulheres estivessem
todas abrigadas em casa». In Cristina
Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT