O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Sois vós que não compreendeis,
senhor. Pedis o impossível, interrompeu-o Suger. Depois apercebeu-se de que o desconhecido
não dava sinais de querer sossegar e decidiu acompanhá-lo o tempo necessário para
que o esgotamento fizesse o seu caminho. E depois, disse, fingindo algum
interesse, só para o fazer falar, como poderei reconhecer o vosso camarada numa
cidade tão grande? Chama-se Gebeard von Querfurt... Um teutão... Procurai-o na Basílica
de Santo Estêvão Maior... Trafica relíquias e..., ostenta estes mesmos sinais. Dito
isto, o homem mostrou-lhe as costas da mão direita. Estava coberta de tatuagens
que até ali Suger não vira. Debaixo dos nós do indicador e do dedo médio estava
desenhado um cavaleiro armado de arco. Uma serpente enrolava-se no seu dedo mínimo
apontando a cabeça na direcção de uma pequena taça tatuada na última falange do
anelar.
Depois de lhe ter mostrado aqueles
sinais, o homem abriu a mão fazendo como que uma bênção, como se quisesse mostrar
o número três. Então Suger viu na palma da mão a imagem de uma Virgem com o Menino
encimada por uma pomba com as asas abertas. Símbolos cristãos juntamente com símbolos
pagãos. O médico fez um trejeito de repulsa. Sabia da existência de amuletos
dotados de representações semelhantes, de origem hebraica ou frígia e não os temia.
Mas até um simples fetiche, se descoberto por um homem da Igreja, iria desencadear
consequências terríveis. Tende atenção!, gritou. Não sei quem sois, mas se algum
dominicano visse esses sinais, o vosso fim seria péssimo. E o meu também, uma vez
que vos dei asilo. Deixai-me explicar..., esconjurou-o o ferido já à beira do delírio.
Já tenho problemas que cheguem, resmungou o médico. Calai-vos se não quereis
que vos bata. O desconhecido permaneceu estendido no chão, fixando-o com o
olhar implorante. Em breve o cavaleiro vai encontrar-me... E desta vez...
Suger ignorou-o. Já fizera muito
por ele. Tratara-lhe a ferida e dera-lhe guarida na sua casa. Continuar a suportar
o seu palavreado era demais. Ainda não o pusera na rua porque as informações sobre
a draconite o tinham deixado fascinado. Mas Milão era longe e deixar Paris iria
custar-lhe a carreira. Sentou-se na cama e examinou minuciosamente a estranha pedra
coberta de pele, enquanto o estrangeiro pegara por fim no sono. Também ele adormeceu.
Quando fechou os olhos sonhou que estava rodeado pelo colégio da escola de
Notre-Dame e mostrava, orgulhoso, uma pedra de draconite a uma multidão interessada.
E todos os mestres se comprimiam em seu redor espantados.
Ao
início da manhã, o leito do Sena tinha uma tonalidade cristalina. As águas corriam
ao longo das margens, entoando laudes à suave luz do sol. Na penumbra da sua casa,
Suger não estava na disposição de se abandonar a semelhante amenidade. Dormira pouquíssimo
e estava de péssimo humor. O hóspede indesejado começara a delirar como um possesso
aos primeiros alvores da manhã. O médico vira-se constrangido a sair da cama e a
verificar o seu estado sem se abster de o maldizer entre dentes. Nada de grave,
no entanto. A febre subira, mas a ferida parecia reagir à medicação.
Sentou-se na borda do enxergão e esfregou
os olhos. O estrangeiro estava deitado no chão, mergulhado numa profunda inconsciência.
O suevo. Fora assim que o cognominara, uma vez que ignorava o seu nome. A julgar
pelo sotaque, devia provir da Alemanha. Não que Suger se importasse muito. Não sentia
nada por ele, nem compaixão, nem simpatia. Apenas alguma curiosidade por causa da
draconite, mas, do ponto de vista pessoal, o suevo não era coisa que lhe dissesse
respeito. De resto, nem podia considerar-se um homem piedoso. Pensamentos caridosos
e altruístas raramente afloravam ao seu coração e não deixavam qualquer marca
da sua passagem. Na juventude fora uma pessoa bem diferente, mas depois da morte
do pai não se importava com mais ninguém a não ser consigo próprio». In
Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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