«(…) A Villa Aseconia era herança
de Lucídio, uma das muitas propriedades da família espalhadas pela Galécia.
Após o casamento, o marido de Priscila mandara remodelar o quarto do casal,
decorando-o com um belo conjunto de mosaicos que compunham uma formosa Vénus
rodeada de um séquito de Nereides, por entre golfinhos, cavalos-marinhos e outros
animais aquáticos. Lucídio Danígico Tácito fizera esta escolha pessoal em sinal
de evocação da paixão com que Priscila o tocara. Mas, naquele momento, ninguém
tinha tempo ou discernimento para apreciar a preciosa relíquia do talento
hispano-romano. O nascimento de Prisciliano foi um acto sofrido quer para a mãe
quer para o bebé. A criatura não tomou consciência do momento, não saberia
nunca explicar os custos e as demoras por que passara desde que a sua frágil
cabeça alcançou a luz e respirou pela primeira vez o ar quente do quarto
materno, naquela manhã de tormenta. O desespero fora tanto como o de sua mãe.
Um rosto choroso espreitou o mundo por debaixo da abertura do alto cadeirão. A
parteira afanava-se nos trabalhos, porque o corpo era grande de mais para uma
via tão estreita. Os gritos de ambos misturaram-se no ar, ultrapassaram portas,
janelas e paredes, sobrepondo-se às pesadas bátegas da chuva, e ouviram-se nas
várias dependências da villa.
Os criados pararam os trabalhos. Uns reuniram-se em volta das lareiras,
invocando os jovens Lares protectores da Villa Aseconia, outros espreitaram de
novo os voos dos pássaros procurando adivinhar o destino, ao passo que os
restantes o faziam perscrutando, seguindo a boa tradição augúrica, as vísceras
de animais que, como exímios especialistas, tinham sempre à mão para as urgências.
E era o caso. As mulheres refugiaram-se aos pés de um pequeno oratório, situado
num recanto da zona onde viviam os colonos, para invocarem Juno Lucina, a deusa
protectora da gravidez e do parto.
Mas
não foi a um áugure, ou a qualquer dos ilustres habitantes do panteão romano,
que Priscila recorreu no momento de todas as verdades. Salva-nos, Ísis, rainha
dos céus! Ajuda-nos, ó mãe dos deuses! Num ímpeto final, expeliu a criatura
acompanhada de um líquido transparente, matizado de sangue. A mãe, rasgada,
derramava-se em lágrimas de alívio. Cá está! É um rapaz! Um rapagão, minha
senhora! Valéria exibia o petiz, depois de o ter depositado no chão, inspeccionado
detalhadamente, de o ter lavado e aconchegado numa manta de seda, enquanto
Priscila recuperava das dores. Tomou-o, por fim, delicadamente, pelas mãos e
amorou-o, sem pressa. A criança acalmara-se, entretanto, e abriu os olhos como
que a adivinhar o mundo novo onde viera desaguar, sem o haver escolhido. Ao
redor, as escravas encostavam-se às paredes, presas no momento. Só a chuva
galaica carpia, lá fora. Os criados, informados do sucesso do parto, acenderam
velas e receberam uma refeição reforçada como benesse pelos bons auspícios que
ali se geraram. Os olhos da jovem mãe eram o espelho do seu mundo interior.
Brilhavam de alegria, alívio e emoção. Mas, no íntimo, surtia-lhe uma névoa de
preocupação que não conseguia discernir. Chamar-te-ás Prisciliano, em homenagem
à tua mãe e aos sacrifícios que me causaste ao nascer!, sentenciou Priscila,
cerimoniosa. Gaio Danígico Prisciliano. Apertou-o levemente contra o peito,
deleitada». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013,
ISBN 978-972-068-096-9.
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