segunda-feira, 23 de abril de 2012

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XV. Ceuta. «Mas se a Fortuna, que é cega, sobre todos procura exercer o seu império, como poderemos escapar-lhe? Para os que “têm baixa a fantasia”, há só um meio: é nunca se meterem em “grandes cousas”»



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«Mas, como se não bastasse o ser a Fortuna uma entidade tão caprichosa, não há quem dela não espere alguma coisa! A ambição, o “pretender do mundo fama e fruto”, faz com que ninguém lhe escape, nem mesmo quem professa desprezá-la!

Outro espanto maior aqui me enleia.
Que, corri quanto Fortuna tão profana
Com estes desconcertos senhoreia,
A nenhuma pessoa desengana.
Não ha ninguém que assente nem que creia
Este discurso vão da vida humana,
Por mais que philosophe, nem que entenda,
Que algum pouco do mundo não pretenda.

Diógenes pisava de Platão
Com seus sórdidos pés o rico estrado,
Mostrando outra mais alta presumpção
Em desprezar o fausto tão prezado.
— Diógenes, não vês que extremos são,
Esses que segues, de mais alto estado?
Pois, se de desprezar te prezas muito,
Já pretendes do mundo fama e fruito

Em seguida o poeta, passando por alto várias categorias de ambiciosos, interpela directamente César e Platão, e pergunta-lhes de que lhes valeram os trabalhos em que quiseram envolver-se. O primeiro morreu às mãos dos seus; o segundo não conseguiu eximir-se aos erros da gentilidade.

Mas pergunto ora a César esforçado,
Ora a Platão divino, que me diga,
Este das muitas terras em que andou,
Aquelle de vencê-las, que alcançou?

César dirá; Sou digno de memoria;
Vencendo povos vários e esforçados,
Fui monarca do mundo, e larga historia
Ficará de meus feitos sublimados.
— É verdade; mas esse mando e gloria
Lograste-o muito tempo? Os conjurados
Bruto e Cassio dirão que, se venceste
Emfim, emfim às mãos dos teus morreste.

Dirá Platão: Por ver o Etna e o Nilo,
Fui a Sicilia, Egypto e outras partes,
Só por ver e escrever em alto estylo
Da natural sciencia e muitas artes.
— O tempo é breve e queres consumi-lo,
Platão, todo em trabalhos? E repartes
Tão mal de teu estudo as breves horas.
Que emfim do falso Phebo o filho adoras?

E afinal de que vale a ambição? Para que servem os trabalhos a que ela obriga? Porque é que o homem se há-de submeter aos revezes da fortuna? Lá vem a morte, que tudo inutiliza. A alma terá mais em que ocupar-se e o corpo já nada sente.

Por quanto, dês que vive já apartada
A alma desta prisão terrestre e escura,
Está em tamanhas cousas occupada.
Que da fama que fica nada cura,
E o corpo terreno sente nada
O Cynico dirá se por ventura
No campo, onde lançado morto estava,
De si os cães ou as aves enxotava.

Mas se a Fortuna, que é cega, sobre todos procura exercer o seu império, como poderemos escapar-lhe?
Para os que “têm baixa a fantasia”, há só um meio: é nunca se meterem em “grandes cousas”.

Quem tão baixa tivesse a phantasia.
Que nunca em mores cousas a mettesse,
Que em só levar seu gado á fonte fria,
E mungir-lhe do leite que bebesse,
Quão bem-aventurado que seria!
Que, por mais que a Fortuna revolvesse.
Nunca em si sentiria maior pena.
Que pesar-lhe de a vida ser pequena.

Veria erguer do sol a roxa face,
Veria correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar a agua donde nace,
Nem quem a luz occulta no horizonte;
Tangendo a frauta donde o gado pace,
Conheceria as hervas do alto monte;
Em Deus creria, simples e quieto,
Sem mais especular algum secreto.

Os outros, “os que não têm baixa a fantasia, só podem evitar os golpes da Fortuna, achando-se num estado semelhante ao de Trasiláo».

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/ JDACT