Cortesia de José Rodrigues e desenho de Marta Belo
«Seguindo as indicações fornecidas, abrindo caminho por entre as névoas, atingi o sítio onde ia exercer a minha profissão. Era um edifício de boa construção e de bom aspecto, projectado que fora para a Pousada do Marvão.
Agradado com o retrato, entrei na porta, que estava semi-aberta, por causa do frio e da humidade, e, ao fundo dum pequeno corredor, deparei com um senhor gordinho e baixo, com ar simpático, que, com delicadeza, me perguntou ao que vinha.
Respondi-lhe que era o novo notário.
O Garcia, meu herói nesta carta e companheiro sempre constante na minha viagem, cumprimentou-me com afectuosidade e respeito e, anafado e contente da minha presença, tentou acariciar-me para enfrentar os défices do clima e as insuficiências da Vila, de que era nascido e onde morava.
Depois de dados os olhares devidos a quem chega de novo, lembro-me que o convidei para almoçar, ao que acedeu, sugerindo, entretanto, que fôssemos ver os aposentos, que estavam reservados para a minha residência.
E, na andança do caminho, por entre vagares que só ele sabia desfrutar, conversando disto e daquilo, mas tudo sobre Marvão, ao descer uma ladeira íngreme, parou a completar o discurso, com que se viera a entreter, a ele e a mim, desde o cartório. Como a pausa estava a demasiar-se, incitei-o a continuar na descida, coisa a que se negou, pois era ali, na casa da Tia Joaquina, que eu ia morar.
Perante a minha íntima reacção ao olhar o edifício, que era de má construção e de má conservação, adivinhando o que me ia lá dentro, declarou que eram os melhores aposentos da Vila.
A Tia Joaquina, ouvindo o nosso falar, veio à janela a anunciar-se, mandando-nos subir, pois a porta estava, como sempre, aberta. Subimos, eu à frente, o meu ajudante atrás, a tentar desembaraçar-se do peso da sua volumetria arredondada, ajudando-o eu a ultrapassar aqueles obstáculos altos e íngremes, que eram os degraus de pedra, muito verticais uns aos outros, quase em ascensão directa, ao cimo dos quais, lá bem no alto, se encontrava a dona da casa, olhando comprazida o nosso hercúlo esforço.
De espírito palrador, a Tia Joaquina recebeu-nos na antecâmara da cozinha. Cumprimentou-me, tirando as mãos debaixo do avental, onde as tinha guardado, desde que nos viu, cá em baixo. Era uma mulheraça, com ares e traços de ter sido linda moçoila, de rosto iluminado, de olhos acesamente azuis, de cabelos loiros, penteados e repuxados, como Renoir pintava os das suas pintadas.
Que me ia sentir bem ali na sua casa, que era, garantidamente, das melhores da terra, que até tinha televisão, declarou.
Eu entreolhava as portas e cubículos, para tentar saber qual era a minha direcção, naquele cruzamento de sentidos, que davam todos para aquele exíguo pátio, ao cimo das escadas, onde o cavaqueio daquela circunstância ainda durava.
Quando atalhei a conversa, perguntando qual era o meu quarto, ela, com o ar mais confiante deste mundo, com andar despachado de governanta de casa, segura, convidou-me a segui-la, descendo agora uma pequena escada interior, com poucos lances, que desembocava no quarto da filha, que dava passagem para o útimo reduto da casa, ali, sim, os meus almejados aposentos...
De relance, olhei espantado para a exiguidade do espaço e das privacidades e, amedrontado do que ia ouvir, perguntei pela casa de banho. Aí, a Tia Joaquina, em voz baixa, com medo de que mais alguém participasse da notícia transmitida, disse-me que, quando eu quisesse tomar banho, de véspera, a avisaria, para, ao cair da noite, e às escondidas, ir à casa do vizinho, do dr. Figueiredo, que vivia no Porto durante a semana, lá haveria mais cómodos, que ainda não tinham entrado na sua». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT