Ana de Castro Osório com 19 anos
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Canção da Partida
[…]
quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queria levar…
Marujos, erguei o cofre pesado,
lançai-o ao mar
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…
- A última, de antes do teu noivado.
[…]
Camilo Pessanha
A declaração de amor e a resposta
«A segunda carta de Camilo Pessanha, sem data, não é menos impressionante e amorosa que a primeira, e também de uma franqueza total:
- “Aos pavores da epilepsia, legado que eu herdei transmitido por minha mãe (a qual já se tem debatido longos períodos no cárcere tenebroso da loucura), às misérias da minha existência desamparada e vagabunda, têm-se reunido os desprezos, por vezes insolentes, de quem quase sempre me é inferior. [...] Não estou habituado a que alguém amorteça os golpes que vou recebendo, ou sequer ate depois as feridas com as brancas ligaduras misericordiosamente. Se alguma vez sinto menos a dor, é pela anestesia que resulta da desproporção do sofrimento. E a carta de V Exa. foi tão escrupulosa em atenuar o golpe inevitável, que chegou a ungir de piedade as velhas úlceras cancerosas. Vou partir, dizV. Exa., para longe: arrastar-me e sangrar. Mas levo ao menos a dúlcida memória deste incidente. Ninguém haverá da minha idade que não tenha tido a deleitação de alguma longa correspondência amorosa. Palavras tão maternalmente benignas como as que V. Exa. me dirigiu, talvez nenhum as tenha lido nem ouvido”.
Como reagiu ao pedido de rasgar a carta de Ana quando a pudesse ’olhar a sangue-frio’? De uma forma à altura do pedido para ele se ir despedir, antes da partida para o Oriente:
- “Recomenda-me V. Exa. que rasgue a sua carta quando a puder ler indiferentemente. Ainda que me fosse dado obedecer, quando chegaria a ocasião de tornar efectiva a obediência? Quando poderia eu ler a carta de V. Exa. Sem comoção, pelo menos sem a serena comoção das lágrimas agradecidas? Restituo-a. Não me pertence, íntima como é, e escrita por uma excessiva compreensão dos deveres de primorosa cortesia e de amizade: guardo apenas das suas palavras a saudade puríssima, que é minha”.
Pede então que Ana não lhe ‘devolva’ as duas cartas dele, e por estas dolorosas razões:
- “Porém a minha primeira, e esta última (tão longa, onde vai o meu abuso!) peço a V. Exa. que não as devolva. Foram escritas para V. Exa. (quem mais as compreenderia?), e deixaram de pertencer-me [...]. A V. Exa., somente, compete rasgá-las. Pois de que serviriam, com as suas manchas estranhas, negro e sangue, um dia, na corbeille de noiva”?
Por último, acaba assumindo também esse pacto de amizade que os viria a unir:
- “Diz-me V. Exa. que não queria perder a sua amizade. Porque haveria de perdê-la? Somente poderia sê-lo pelo mal que fiz obrigando V. Exa. a entristecer e afligir-se pelas minhas tristezas. E a prova mais completa da minha amizade é esta carta serena e lúcida. Obedecerei a V. Exa. Indo despedir-me antes de partir; amizade incondicional”.
O que fez, sabemo-lo já, numa atitude de estóica nobreza. Camilo ‘restitui’ a carta de Ana, e esta não rasgou as dele, nem as devolveu. João de Castro Osório não foi capaz de publicá-las, por razões compreensíveis, e muito menos de inutilizá-las.
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Confiaram todos na sabedoria do acaso (que por vezes a tem).
Passados muitos anos nas minhas mãos, seria imperdoável (vejo agora) se as não revelasse, porque, além de iluminarem o posterior relacionamento de ambos, honram a sua memória». In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT