domingo, 22 de abril de 2012

Silva de Azevedo. O Príncipe Sem Coroa: «A “honro e proveito” que se lhe seguissem viriam por acréscimo. Mas eram legítimos. Todavia, pai e filhos, por uma delicada razão de cortesania e amor, julgaram seu dever consultar a rainha. Os jovens receavam qualquer mágoa, qualquer escusa: era mãe; era mulher...»




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«Convoca letrados e teólogos, propõe-lhes o caso e dá-lhes prazo para estudo e resposta.
Quanto à “honra e proveito”, seriam um corolário interessante; mas de segunda ordem. A resposta favorável às aspirações dos infantes, do Infante Henrique especialmente, foi dada em Conselho, e constitui um monumento de sabedoria: sim, era “serviço de Deus”, antes de tudo.
A “honro e proveito” que se lhe seguissem viriam por acréscimo. Mas eram legítimos.
Todavia, pai e filhos, por uma delicada razão de cortesania e amor, julgaram seu dever consultar a rainha. Os jovens receavam qualquer mágoa, qualquer escusa: era mãe; era mulher... Ademais, ainda seria de obrigação moral ouvir o parecer do Condestável.
Também lhe temiam a resposta, porque já era velho...
Mas tudo veio a talho-de-foice. D. Filipa meditou: fora ela quem afeiçoara aquela nobreza dos filhos; compreendeu, concordou. Nuno Álvares ouviu, estremeceu num calafrio de entusiasmo juvenil, e aprovou um plano que lhe carecia «só revelado por Deus».
Esta série de consultas e despachos lembra mesmo um requerimento da actualidade, passando pelos trâmites legais, até ao final deferimento. As razões é que sobrenadavam numa atmosfera muito superior.
Tal era o ambiente disciplinado pela hierarquia, a lógica e a amabilidade, em que a “Ínclita Geração” foi criada, sob a égide paterna. A influência materna, acatada com respeitoso amor, incutiu nos filhos o requinte fidalgo, quase feminino. Temperava-se-lhes destarte a máscula iniciativa do cérebro e da força, que é apanágio dos bravos! Pai e mãe propiciavam-lhes ainda uma densa cultura no remanso das Letras e na província das Ciências, muito acima da craveira usual da época, mesmo em filhos de reis.
Por entre o bulício das tarefas costumeiras na corte, cruzavam-se citações de Valério Máximo, de Séneca, de Cícero, do “Phillosofo” (Aristóteles), de “Sallustrio” (com seu “Catillinaro”), de S. Agostinho, de Tito Lívio, ‘estorial dos romaãos’ e outros.
De resto, eram activas e variadas as incumbências de cada príncipe. Nunca se conseguiu rastrear meia hora de ociosidade emoliente, quer através da diplomática, quer na historiografia oficiosa, mas honesta. Cada qual teve um carisma pessoal, inconfundível, nos seus afazeres, íamos a dizer, em sua missão.
Sim, tinham em comum o alto espirito com que escolheram e escrupulosamente executaram as suas tarefas, o infante Duarte (1391), sendo o herdeiro da coroa, era naturalmente o mais sobrecarregado. Pensador subtil, organizador da primeira
“Livraria” (oficina e biblioteca particular), possuía um temperamento sensível. Tinha crises de melancolia. Abre a longa série de portugueses que investigaram as origens e natureza da “saudade” nacional. Ainda infante, madrugava para assistir à celebração das missas. Depois ia dedicar-se aos encargos da justiça e finanças, cuja superintendência El-Rei lhe confiara. Nessas ocupações se demorava, como qualquer subalterno, até ao meio-dia, hora da refeição. Seguiam-se as audiências, das quais se recolhia a repousar em seus aposentos. Esse repouso seria a sesta peninsular, ou um refúgio para a sua neurastenia?
Pelas duas horas da tarde recebia conselheiros e funcionários da Fazenda, com os mesmos despachando até as 9 da noite. Restava dedicar-se, com os seus servidores particulares, aos negócios da sua própria casa, até às 1l horas. Muito poucas dormia.
Resumindo: um horário apertadíssimo de burocrata atenazado ao livro-de-ponto, mau grado os anseios do espírito em solucionar a magna questão do “Ser ou não Ser”.
O infante Pedro (1392), liberto das obrigações das Secretarias, foi o ilustrado (não ocioso) viajante das Sete Partidas. Jornadeou pelos centros culturais da Flandres, bateu-se contra os turcos (sob a bandeira do imperador Segismundo) e fez investigações em Veneza.
O Doge presenteou-o, significativamente, com um Mapa-Múndi, um exemplar das “Viagens de Marco Polo” e outros livros. Cavalheiro e cavaleiro, mereceu a distinção da Ordem da Jarreteira. Intelectual e bem português, reuniu, em seu “Livro da Virtuosa Benfeitoria”, os pendores literários da família à inclinação nacional do Bem Fazer.
Do infante Henrique (1394), por ora digamos apenas ter sido a «Froll da Cavallaria». Como seu irmão Fernando, era impoluto nos costumes, virgem como ele, até à morte, observa o cronista, que tinha muitas fontes de informação. Um e outro devotaram-se aos estudos predilectos:
  • Henrique, mais técnico; 
  • Fernando, exímio na Latinidade e nas Escrituras.
 Um, apreciando mais o verbo ‘Fazer’, com que esmaltou a sua divisa; outro, solucionando a seu modo a preocupação de Duarte I, “Ser ou não Ser” não ser cardeal, recusando o convite de Roma para tal; ser mártir duma grande causa, até ao completo aniquilamento, em Tânger». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.

Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT