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«Manuel I, como Góis nos conta na crónica do monarca, procurava atrair
à corte os melhores músicos da Europa e do além-mar; devem ter sido incluídos
representantes da musica polifónica, visto que esse género de música se tinha
espalhado em muitos países e era popular na vizinha Espanha, em especial na
Universidade de Salamanca e na corte de Carlos V.
Durante a permanência de Góis no palácio, Manuel I pôs em prática um
ambicioso programa de construção que só foi igualado pela reedificação de
Lisboa por Pombal após o terrível terramoto de 1755. Os olhos de Góis cedo se
treinaram a distinguir a obra do artista autêntico da de imitação inferior? Tornou-se
um coleccionador entusiasta de quadros e acabou por ser conhecido pela sua
colecção de obras de grandes artistas contemporâneos.
Por se preocupar com as artes, Manuel I não mostrava interesse por
reformas na esfera académica, embora elas fossem bem precisas, e em
consequência Damião de Góis não teve no palácio grandes oportunidades para
adquirir conhecimentos da literatura da Antiguidade. Apesar disso, contudo,
recebeu bastante encorajamento nas suas primeiras mostras de interesse pela
história. Manuel I tinha um grande sentido da tradição, e foi no seu reinado
que começou a enfadonha tarefa de se pôr ordem nos “Arquivos Nacionais”, tarefa
que seria continuada muitos anos mais tarde pelo próprio Góis.
NOTA: O humanista italiano Cataldo foi contratado pelo rei João II para
professor de seu filho. É possível que a presença de Cataldo no palácio tenha
exercido uma forte influência no desenvolvimento intelectual de Manuel I.
Para mais, Manuel I insistia em que os príncipes e, supõe-se, os
cortesãos, lessem regularmente as velhas crónicas. Por isso Damião de Gois
aprendeu um pouco da disciplina a que mais tarde iria dedicar as suas energias
de escolar, e começou a ter uma concepção da historiografia como ciência.
Quer o humanismo tenha ou não promovido a ciência moderna, não resta a
menor dúvida de que o clima que reinava no palácio de Manuel I era propício ao
pensamento científico. Se durante o período mais produtivo de criação
humanística Gois acentuou que o verdadeiro conhecimento tinha que derivar dos
factos e da observação, a semente que produziu esse raciocínio na maturidade
foi semeada na juventude. Além do apoio real às ciências, a importância de
fontes primárias era evidenciada pelo imenso caudal de novos dados que afluía
ao palácio.
Navegadores, guerreiros e outros aventureiros portugueses iam para
além-mar por uma multiplicidade de razões: alguns esperavam adquirir riquezas e
poder, muitos desejavam promover o Cristianismo entre os infiéis, e outros
sentiam curiosidade pelas novas terras em si. Este último grupo, numa atitude
de espírito verdadeiramente científica, coligiu abundantes informações em campos
como a botânica, a zoologia, a medicina e a etnografia. Ainda se pode ver um
exemplar florescente dos seus achados num subúrbio lisboeta, a Sintra de hoje; aí,
num parque sem igual, crescem todas as espécies de arbustos, árvores e flores,
que foram plantadas durante o período dos descobrimentos de além-mar. A beleza exuberante
e a variedade de formas exóticas, de cores brilhantes e de perfumes de
entontecer fizeram com que Byron exclamasse, ao vê-lo, “este é o Éden glorioso”.
Havia outros exemplos dos frutos da observação. Pedro Nunes, o famoso
astrónomo e matemático que foi mestre de vários príncipes, foi grandemente
estimulado nos seus estudos pelo contacto íntimo com João de Castro, herói de
conquistas na Índia, que, em seguimento dos seus feitos, escreveu um relato
exaustivo das suas descobertas científicas e de outras experiências.
Nenhum pormenor digno de registo parece ter escapado a Góis, embora os
resultados da instrução que recebera na juventude não fossem sempre
imediatamente aparentes. Por exemplo, o rei Manuel que, como muitas pessoas da
época, acreditava que a vontade de Deus estava escrita nas estrelas, nunca
mandava uma expedição sem pedir conselho ao seu astrólogo. Góis, tanto quanto
sabemos, não rejeitava essa “sábia astrologia” mas aceitava a possibilidade da
existência de fontes irracionais de conhecimento, e não excluía essas fontes
das suas investigações de escolar, que, alias, se baseavam em factos». In
Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1967.
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