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De como o Cavaleiro começou a sua Narrativa
«Inês nasceu em terras galegas, lá onde a névoa confunde os contornos das coisas, o verde transforma os prados em esmeraldas e o rumor contínuo da chuva converte a inquietude em suave melancolia. Do mar ali próximo aproveitou o azul dos olhos, dos morros arredondados que rodeavam as suas terras, a harmonia da figura e dos cuidados que auspiciaram o seu nascimento, um certo magnetismo, a que não escapava ninguém que a contemplasse. Criada como foi em Castela, dos trigais doirados recebeu a cor da abundante cabeleira e, da desolação da paisagem, uma certa austeridade de maneiras que a tornavam, se assim se pode dizer, ainda mais sedutora...
- Deixai-vos de enigmas, bom cavaleiro, e ide de imediato ao fundo da história, pois era capaz de apostar que o mesmo se passa com Lope.
- Paciência, Luís, ser-me-ia impossível seguir com a minha história sem, antes, relatar as maravilhas que fizeram de D. Inês de Castro uma mulher digna de ser louvada por poetas e artistas.
- E amada por reis, não vos esqueçais - atalhou Lope.
- Portanto, como eu dizia, D. Inês nasceu na Galiza, de família nobre, por volta de 1320. A mãe, D. Aldonza Soares de Valladares era aparentada com os reis de Castela e o pai, Pedro Fernández de Castro, senhor de Lemos, acrescentou ao seu escudo de armas a valentia, pois foi reconhecido como ‘Senhor da Guerra’, tantas foram as suas façanhas no campo de batalha. O fidalgo servia a coroa portuguesa, à qual estava unido por laços de parentesco e, em virtude dessa obrigação, as suas terras repartiam-se pelas duas margens do rio Minho. Inês passou os primeiros anos entre a Galiza e Portugal, anos não demasiado venturosos, posto que raramente se referisse àquelas suas andanças infantis.
- Mas, bom cavaleiro, não dizíeis que da terra castelhana recolheu os modos austeros e o loiro de trigo para os seus cabelos? Por Deus, que não vos entendo! De onde, se nasceu galega e em Portugal se criou, lhe vêm os traços castelhanos?
- Não vos impacienteis, Luís. Ia explicar-vos como e quando se deu a arribada de Inês em Castela. Deixai-me, se vos apraz, prosseguir a narrativa.
- Adiante, então.
- Inês conheceu desde bem cedo o sabor da solidão. Ainda menina, viu-se na necessidade de assistir a mãe, que jazia no leito de morte. E, como se tal aflição não bastasse, pouco depois viu-se também privada de todo o seu normal ambiente quotidiano, pois o pai decidiu enviá-la para terras de Castela, com o encargo de acompanhar D. Constança Manuel nos seus lazeres e obrigações.
- Mas, como foi possível o pai desprender-se dela? Rapariga tão bela seria certamente um trunfo seguro para conseguir um parentesco com reis e lograr uma boa e nobre descendência.
Por necessidade, meu amigo - respondeu o português. - De pouco serve a beleza quando não há grão nas arcas e a panela só produz caldo morno por falta de sustância. É certo que Pedro Fernández de Castro era proprietário de um grande domínio, mas os ventos não corriam de feição na Galiza. A peste e a fome haviam dizimado a população e nem as mais altas famílias escaparam a elas. Se a isso acrescentarmos a morte precoce da esposa, não é de estranhar que Pedro de Castro sacrificasse o seu amor de pai e, prevenindo o futuro da filha, decidisse entregá-la ao cuidado de João Manuel, infante de Castela. Este, parente afastado da sua defunta esposa e homem de preclaras virtudes, introduziria Inês no círculo de D. Constança Manuel, onde poderia receber todos aqueles refinamentos que a sua delicadeza exigia.
- Mas quem era essa D. Constança Manuel? Seria, por acaso, alguma nobre dama a precisar de cuidados próprios de uma pessoa idosa?
- Não, meu amigo. Era poucos anos mais velha que Inês.
D. Constança tinha nascido do segundo matrimónio de João Manuel, infante de Castela, ilustre poeta, que, dada a sua condição de neto do santo rei Fernando, havia exercido a função de co-regente do Reino com D. Maria de Molina e o infante Filipe, durante a menoridade do futuro rei Afonso XI.
- Amigo, por favor, não nos canseis com as excelências de João Manuel, pois todos lemos o seu conde “Lucanor” e já conhecemos a pureza da sua prosa e a elevação do seu pensamento. Melhor seria que prosseguísseis com a história». In Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT