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Désir ou o Canto do Cisne
«Naquele dia de Maio, sobre o seu cavalo ricamente ajaezado, curvando a sua alta figura sob o peso das preocupações, o sogro do Rei de Portugal, que, com a lucidez da sua mente política, bem alicerçada na sua vasta cultura religiosa e filosófica, estruturara, para o sobrinho Rei, um esquema de Estado que teria feito dele o primeiro homem da Nova Europa em terras de Portugal, caminhava inevitavelmente para o seu próprio fim e o do seu imenso sonho político, apesar de ter informado os companheiros e o seu pequeno exército de que apenas se dirigia a Santarém para estabelecer os termos da paz com o Rei, porque a filha, e apenas por essa razão, assim lho solicitara. Ele sabia que a resposta, essa resposta, seria suficiente para que o raivoso Bragança, seu meio-irmão e seus apaniguados e o próprio sobrinho recusassem, por ofensa, qualquer acto de apaziguamento no conflito. Sabia-o, mas porque não, se tudo já estava perdido? Talvez Pedro, nem mártir, nem santo, nem déspota, apenas homem de poder, de honra e de Estado, tivesse aceitado o fim do seu sonho, como acaba por acontecer sempre, quando a inteligência assim o exige e o bom senso também. A verdade é que ele, afinal, não seguiu directamente para Santarém. Lentamente, por etapas, como se cumprisse uma promessa ou se tivesse imposto a si próprio a expiação de uma longa culpa, em nome de um desígnio oculto ou dos desejos de outros que também os acabaram por expiar mais tarde, ele percorre o caminho entre Coimbra e Ponte de Lousa inebriado pelo sentir de uma pensada placidez e acaba, quase por desafio para com ele próprio e todo o seu passado, por esperar ingloriamente o exército real de 30 000 homens junto à Ribeira de Alfarrobeira.
E aí ficou, talvez escutando, já numa outra dimensão do espírito, por breves instantes, quando aquela flecha certamente dirigida e bem comprada a ouro lhe atravessou o coração, os belos e suaves acordes daquela melodia escrita por um anónimo músico, morto sabe-se lá onde, mas oriundo de um país germânico e que acompanha os derradeiros momentos da ‘Lenda da Morte do Cisne’ que, mais tarde eu vi ressuscitar em Évora, na grande Sala de Madeira, aquando das núpcias de seu bisneto, na pessoa de El Rei João, cavaleiro do mesmo nome e cuja memória vai, de permeio com a minha vida, preencher as páginas desta crónica que, por muito tempo, ficará escondida porque assim decidi e Pedro me prometeu.
Pedro, esse jovem que adoptei, louro e branco como eu, porque não sendo meu filho de sangue, é um dos filhos de Kaheena, como todos os outros que vivem no Norte de África e mantiveram sempre a sua língua-mãe, a sua cultura, a sua religião, os seus costumes e a memória dos seus antepassados. Ainda hoje cantam as lendas de amor e de guerra de Kaheena e de Khaled como eu irei cantar aqui, quando falar de mim e das campanhas de El Rei Afonso na costa marroquina e da eterna peregrinação das populações da orla do Mediterrâneo, saltando de porto para porto, de abrigo para abrigo, trocando o nome e a alma, a recordação do passado, quantas vezes? e mantendo-se anónimas mas tremendamente actuantes porque são elas a carne viva dos grandes movimentos da história, das grandes opções e, invariavelmente, as mais tristes também porque lhes não assiste senão o direito à quantidade, como as figuras de uma iluminura ilustrando as estações, trabalhando o campo, ceifando o trigo, lavrando a terra, carregando tonéis para um barco de cabotagem de um qualquer cais ou para os grandes navios de mercadorias que vêm da Flandres ou dos portos ingleses, de Génova, Veneza, ou ainda como aqueles vultos que percorrem a paisagem de fundo dos quadros que vendem os mercadores flamengos, onde se vislumbra o circuito de uma muralha que envolve uma cidade banhada por uma luz pálida e, à volta, curvados vultos de homens e de mulheres, e até de crianças, que o artista pintou apenas para preencher espaços esquecendo-se que, nesse mesmo instante, eles sentiam, pensavam, talvez sofressem ou rezassem em silêncio a Jesus para lhes aligeirar as penas, as moléstias, os males da guerra ou simplesmente lhes facultar uma boa colheita de cereal para o pão quotidiano». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT