Afonso X e os soldados
«(…) Afonso X, o Sábio, está no centro dum ciclo satírico, onde a poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou, atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos. Às vezes, nada tão lúcido como o ódio. Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e dos peões todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do rei valiam mais do que esta peonagem. E a sua indignação desafoga-se contra os que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos: Nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha, ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria (coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros mouros de Azamor:
O genete
pois remete
seu alfaraz corredor:
estremece
e esmorece
o coteife con pavor.
[...............]
Vi coteifes de gran brio
E no meio do estio
estar tremendo sen frio
ant’os mouros d’Azamor;
e ia-se deles rio
que Auguadalquivir maior.
Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem
passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e
não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada e nunca fez
cavalgada, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de cantiga
para rir. Temos, aqui, uma invectiva, algo da maldição dum profeta atraiçoado e
sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás noutra cantiga quase logo a seguir:
Quem da guerra levou cavaleiros e foi guardar dinheiros à sua terra; quem não
dava pão a comer aos soldados; quem, por medo, foi para casa beber vinho; quem
fugiu da fronteira ou andou a roubar os mouros e foi para a sua terra roubar
cabritos, esse non ven al maio. Quer dizer, não vem à revista da tropa,
ao alardo. Iam para a guerra
a fingir. E alguns levavam pendão, mas não levavam caldeira. Nunca pensaram
numa campanha a sério, com soldados para alimentar». In Mário Martins, A Sátira na
Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série
Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, 1986.
Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,