Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405
«(…) O herdeiro do trono
pestanejou, avaliando como haveria de responder àquela pergunta. As palavras
não eram um mero utensílio de conversação para o infante, que as tinha em tanto
apreço como o sentido de dever. Duas marcas de carácter que partilhava com o
irmão mais próximo de si, em idade e interesses, mas de quem o distanciava o
temperamento. Se o mais novo não calava o que entendia ser a verdade, o outro
punha na concórdia um dos propósitos de vida. Por isso, demorou-se antes de afirmar:
Não estou inteirado de nada. Nunca se mostram exuberantes no trato, com mostras
de afeição ou desafecto. Porque perguntas? Vi-os empedernidos no cumprimento.
Duarte virou os seus grandes olhos
na direcção da mãe e do meio-irmão, e Pedro seguiu-lhe a mirada. A figura imponente
de Afonso de Barcelos trajava como o grande nobre que era, e o rosto, que mantinha
por costume fechado, mostrava o deleite de se saber o centro das atenções naquele
dia. Era o principal enviado do rei a Inglaterra para acompanhar a irmã Beatriz.
Na verdade, prosseguiu Duarte, já me tenho questionado como tu. Nossa mãe
sempre rodeou Beatriz de desvelos, mas o mesmo não se passa em relação a Afonso.
Já perguntei a el-rei… Já?, surpreendeu-se Pedro. E o que te respondeu? Duarte mostrou-lhe
um raro sorriso travesso: Que são coisas de damas...
Pedro atentou, agradado, no
sorriso do irmão mais velho. Duarte era, por aqueles dias de celebração, um jovem
diferente, como se lhe tivesse voltado a jovialidade que perdera nos últimos tempos.
Ao completar catorze anos havia pouco, o pai integrara-o na governação do reino.
A morte do primogénito, Afonso, anos antes, lançara a família de Avis no desespero
e Duarte vira-se herdeiro de um dia para o outro. Quase não lhe fora permitido chorar
o irmão, e o rei contrariara o desgosto profundo com o desafio de preparar um novo
infante. Roubara-lhe a mocidade com deveres, afastando-o dos folguedos que até aí
lhe eram permitidos com o irmão Pedro. O olhar do herdeiro tornara-se melancólico
e angustiado com aquele peso. O trono era um lugar de ralações, descobrira da pior
maneira o infante ilustre, que reservava as raras confissões para os ouvidos atentos
do irmão, quando o desalento lhe tomava conta da alma. Pedro também fora
obrigado a crescer depressa com a fatalidade. Desvairado com a possibilidade de
outro revés do destino que lhe levasse o novo herdeiro, João preparava o segundo
filho como reserva do reino, mas sem o incluir na governação. E vincava sempre essa
crueza: teria de estar à altura, mas era o segundo.
Os gritos exultantes do povo redobraram
quando a comitiva real se deixou ver, na descida das alturas do monte para o terreiro.
João de Avis e dona Filipa de Lencastre recompensaram bem a tenacidade dos que
haviam aguentado horas para garantir uma nesga de espaço nas ruelas esguias e íngremes,
por entre o casario encostado. Apareceram com toda a majestade e luxo que se esperava
de tão grande rei de Portugal e dos Algarves e da sua rainha, em cavalos bem arreados,
a coroa de ouro sobre os cabelos escuros do monarca refulgia com as melhores
pedrarias, os mantos reais de veludo escarlate de ambos, forrados a pele de arminho,
prendiam-se sobre o peito com grossas correntes de ouro maciço. Ao lado do
marido, dona Filipa de Lencastre ocultara o cabelo loiríssimo numa crespina elevada,
recamada de fio de ouro, pedras e aljôfares, do qual pendia um delicado véu de seda.
Beatriz, a noiva, tinha o
privilégio de seguir no cortejo ao lado do rei, a figura delicada coberta pelos
mais lustrosos panos de ouro, que a lei reservava aos abençoados por Deus para reinar
sobre os outros. El-rei valorizava a aliança inglesa acima de quase tudo, mas também
havia amor de pai e emocionava-se de ver partir a filha. Resignara-se com dor à
sorte traçada desde o nascimento a qualquer infanta: servir os interesses do
reino, com uma proveitosa aliança de casamento. O noivo não estava. Aguardava a
jovem, com quem já casara por procuração, na ilha enevoada de dona Filipa, do
outro lado do mar. Contido atrás do cordão humano dos guardas, o povo gritava por
el-rei. Dom João erguia a mão benevolente, que não se molestasse ninguém, não carecia
aquele povo leal de mostras de força. Avançavam devagar, com os cavalos a passo
curto, entre o mar de gente que lançava pétalas». In Isabel Machado, Infante Dom
Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença,
Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.
JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,