quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «Beatriz, a noiva, tinha o privilégio de seguir no cortejo ao lado do rei, a figura delicada coberta pelos mais lustrosos panos de ouro, que a lei reservava aos abençoados por Deus para reinar sobre os outros»

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«(…) O herdeiro do trono pestanejou, avaliando como haveria de responder àquela pergunta. As palavras não eram um mero utensílio de conversação para o infante, que as tinha em tanto apreço como o sentido de dever. Duas marcas de carácter que partilhava com o irmão mais próximo de si, em idade e interesses, mas de quem o distanciava o temperamento. Se o mais novo não calava o que entendia ser a verdade, o outro punha na concórdia um dos propósitos de vida. Por isso, demorou-se antes de afirmar: Não estou inteirado de nada. Nunca se mostram exuberantes no trato, com mostras de afeição ou desafecto. Porque perguntas?  Vi-os empedernidos no cumprimento.

Duarte virou os seus grandes olhos na direcção da mãe e do meio-irmão, e Pedro seguiu-lhe a mirada. A figura imponente de Afonso de Barcelos trajava como o grande nobre que era, e o rosto, que mantinha por costume fechado, mostrava o deleite de se saber o centro das atenções naquele dia. Era o principal enviado do rei a Inglaterra para acompanhar a irmã Beatriz. Na verdade, prosseguiu Duarte, já me tenho questionado como tu. Nossa mãe sempre rodeou Beatriz de desvelos, mas o mesmo não se passa em relação a Afonso. Já perguntei a el-rei… Já?, surpreendeu-se Pedro. E o que te respondeu? Duarte mostrou-lhe um raro sorriso travesso: Que são coisas de damas...

Pedro atentou, agradado, no sorriso do irmão mais velho. Duarte era, por aqueles dias de celebração, um jovem diferente, como se lhe tivesse voltado a jovialidade que perdera nos últimos tempos. Ao completar catorze anos havia pouco, o pai integrara-o na governação do reino. A morte do primogénito, Afonso, anos antes, lançara a família de Avis no desespero e Duarte vira-se herdeiro de um dia para o outro. Quase não lhe fora permitido chorar o irmão, e o rei contrariara o desgosto profundo com o desafio de preparar um novo infante. Roubara-lhe a mocidade com deveres, afastando-o dos folguedos que até aí lhe eram permitidos com o irmão Pedro. O olhar do herdeiro tornara-se melancólico e angustiado com aquele peso. O trono era um lugar de ralações, descobrira da pior maneira o infante ilustre, que reservava as raras confissões para os ouvidos atentos do irmão, quando o desalento lhe tomava conta da alma. Pedro também fora obrigado a crescer depressa com a fatalidade. Desvairado com a possibilidade de outro revés do destino que lhe levasse o novo herdeiro, João preparava o segundo filho como reserva do reino, mas sem o incluir na governação. E vincava sempre essa crueza: teria de estar à altura, mas era o segundo.

Os gritos exultantes do povo redobraram quando a comitiva real se deixou ver, na descida das alturas do monte para o terreiro. João de Avis e dona Filipa de Lencastre recompensaram bem a tenacidade dos que haviam aguentado horas para garantir uma nesga de espaço nas ruelas esguias e íngremes, por entre o casario encostado. Apareceram com toda a majestade e luxo que se esperava de tão grande rei de Portugal e dos Algarves e da sua rainha, em cavalos bem arreados, a coroa de ouro sobre os cabelos escuros do monarca refulgia com as melhores pedrarias, os mantos reais de veludo escarlate de ambos, forrados a pele de arminho, prendiam-se sobre o peito com grossas correntes de ouro maciço. Ao lado do marido, dona Filipa de Lencastre ocultara o cabelo loiríssimo numa crespina elevada, recamada de fio de ouro, pedras e aljôfares, do qual pendia um delicado véu de seda.

Beatriz, a noiva, tinha o privilégio de seguir no cortejo ao lado do rei, a figura delicada coberta pelos mais lustrosos panos de ouro, que a lei reservava aos abençoados por Deus para reinar sobre os outros. El-rei valorizava a aliança inglesa acima de quase tudo, mas também havia amor de pai e emocionava-se de ver partir a filha. Resignara-se com dor à sorte traçada desde o nascimento a qualquer infanta: servir os interesses do reino, com uma proveitosa aliança de casamento. O noivo não estava. Aguardava a jovem, com quem já casara por procuração, na ilha enevoada de dona Filipa, do outro lado do mar. Contido atrás do cordão humano dos guardas, o povo gritava por el-rei. Dom João erguia a mão benevolente, que não se molestasse ninguém, não carecia aquele povo leal de mostras de força. Avançavam devagar, com os cavalos a passo curto, entre o mar de gente que lançava pétalas». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

 Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

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