«A grande mesa de carvalho, que o Espadeiro tinha trazido de Tarouca, estendia-se ao longo da nave. Nela cabiam, com largueza, vinte convivas. Porém, no paço da Almedina, naquele fim de tarde de Agosto de 1145, não eram mais de dez, entre prelados e cavaleiros. Leitões da Bairrada, enchidos de Lafões e queijos de Seia enfeitavam a mesa, a que os canjirões de vinho do Dão e o pão quente, acabado de cozer, emprestavam um colorido e um aroma que casavam bem com aquelas iguarias próprias da mesa de um rei. O salão de armas da alcáçova do paço real era robusto e arejado. A nave alta, que a colunata de cantaria sustentava, abria-se, do lado norte, em duas amplas janelas para o pátio interior, onde, no meio de um delicado jardim, um fontanário de granito borbulhava uma torrente contínua para um tanque onde nadavam alguns peixes coloridos. Era, porém, no lado sul, onde a colunata se projectava em forma de ferradura, que a vista era mais bela, alongando-se pelo arrabalde até ao Mondego, aos férteis campos de semeadura e aos montes fronteiros pejados de um arvoredo denso e refrescante.
Dom Afonso Henriques, a quem o povo
começava a habituar-se a tratar por rei, tinha sido coroado, dois anos antes,
na velha Sé de Coimbra, ainda em obras. Coroação sem presença do povo, mas afiançada
pela clerezia que o rodeava e apoiava, assente nas Cortes de Lamego, onde
cavaleiros e prelados de todo o território portucalense se tinham reunido, em
data que ninguém sabia. Falava-se no grito do Almacave como se todos o
tivessem ouvido, mas era duvidoso que algum vilão de Coimbra conhecesse Lamego e,
muito menos, a Igreja de Santa Maria do Almacave, onde os mais informados
juravam, a pés juntos, que as Cortes se tinham reunido, em data incerta e variada,
entre 1139 e 1143, autenticadas pelo ouvir dizer e segundo a criatividade e a boa-fé
de cada um.
No topo da mesa, numa cadeira de espaldas,
o rei, de barbas e cabelos longos, como então se usava, na plenitude dos seus
recentes 36 anos, dominava a assembleia. Os olhos eram profundos e as sobrancelhas
abundantes, o riso e os gestos, com que amiúde pontuava a conversa, eram
troantes e vigorosos. À sua direita, dom João Peculiar, desde há sete anos arcebispo
de Braga e primaz das Espanhas, a tudo correspondia com acenos brandos e
sorrisos seráficos. Do lado esquerdo, o bispo de Coimbra, dom Teodoro, calado e
beatificado, vermelhusco do vinho que não largava, comia como um alarve, de boca
aberta e pingo seboso a cair-lhe do canto da boca. Sete cavaleiros compunham o resto
da mesa: Gonçalo Mendes Maia, de cabelos já a encanecer, um pouco recuados na
testa, esfarripados e ralos; Lourenço Viegas, o Espadeiro, garboso e vivaz,
um dos filhos mais velhos de Egas Moniz; seu irmão Mem Moniz, bem mais moço; o alferes-mor
Pero Pais Maia, filho de Gonçalo Mendes; Gualdim Pais e Martim Moniz, cavaleiros
da hoste real; e Gonçalo Sousa, o Bom, um cavaleiro de Ribadouro, de quem
o rei muito se agradava. Completavam o quadro, junto às janelas viradas a Sul, dois
enormes cães de pelo negro e farto, como os da serra da Estrela, que comiam, em
silêncio, os ossos de leitão que lhes iam atirando». In António Costa Neves, O Sem
Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT
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