Paço de Lisboa, Portugal, dois anos mais tarde
«(…) Afonso IV amarrotou a carta
da filha, lançando-a para o chão, num arrebatamento de fúria. O que diz Maria?,
afligiu-se dona Beatriz. Que o vosso sobrinho transformou uma infanta de
Portugal numa barregã! A rainha persignou-se: Credo, senhor. E quer fazer do
meu neto um bastardo, acrescentou o rei. Mas que diz ela?, insistiu a rainha,
voltando-se para uma aia a quem ordenou: Trazei-me a carta. Beatriz pegou no
pergaminho e endireitou-o, esticando-o com as mãos sobre as pernas. Leu
rapidamente. Pobre filha..., lamentou. Escreverei ao rei de Castela sem demora.
E credes que esse algoz atentará nas vossas palavras? Já houve conflitos resolvidos
pela intervenção das rainhas, ripostou a mulher com firmeza.
Afonso não respondeu. Beatriz
sabia do que falava. Quando era ainda infante e se ergueu em armas contra seu
pai, dom Dinis, revoltado com o tratamento de preferência dado pelo rei a dois
bastardos, Afonso Sanches e João Afonso, temendo que lhe roubassem o trono,
acabara por ser a intervenção da rainha dona Isabel a pôr fim à contenda entre
pai e filho. A bastardia era um tema que punha Afonso fora de si. O momento
presente já se lhe desvanecia na cabeça, tomado pela raiva que vinha do
passado. À respiração alterou-se no peito do rei a recordar como a vingança
varrera o reino mal subira ao trono, pelos anos de insultos sofridos. O rei
Dinis transformara os bastardos nos homens mais poderosos de Portugal.
Com a paz, venceu também a
imposição do infante ao rei Dinis: que os bastardos fossem afastados dos cargos
e da corte. Afonso Sanches foi exilado para os seus domínios no Castelo de
Albuquerque, em Castela. A sanha vingativa do herdeiro repetia-lhe que o
afastamento para terras vizinhas, ainda para mais próximas de Portugal, não
bastava quando se tratava de aniquilar um rival. Nem o desterro para Castela,
destituído de tudo, amansou o bastardo. Afonso Sanches acumulou riqueza e bens,
aproximando-se dos grandes do reino vizinho, gulosos das terras portuguesas. A
ambição nunca andava longe do ódio, e das alianças de Afonso Sanches com
castelhanos muitos trabalhos viriam para o futuro rei de Portugal.
Mal subira ao trono, Afonso
convocou com rara celeridade as Cortes em Évora, para que os três estados lhe
jurassem fidelidade e vassalagem. Não ficara fora do juramento nenhum fidalgo,
prelado ou representante dos concelhos, não fosse alguém ter a ousadia de apoiar
um dos dois bastardos que desgraçavam o sossego do novo soberano, que não se contentou,
porém, com as reunião das Cortes para assegurar que seria apenas seu todo o poder
régio. Afonso Sanches e João Afonso também enviaram juramento à distância. Mas o
novo rei já cumprira 34 anos, tempo bastante para acumular muito saber da
guerra, dos negócios do reino e da traição dos homens. E decidiu-se a usar a mão
pesada de justiceiro». In Isabel Machado, Constança, A Princesa
traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN
978-989-626-718-6-
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