«(…) Sim, como se fosse possível, agora que já estamos em Coimbra, voltarmos de novo a Guimarães. O nosso caminho só pode ser para a frente: Santarém, Lisboa, Alcácer e, quiçá, Évora, e todas aquelas praças que, ao longo do Odiana, defendem Badalhouce!, entusiasmou-se Afonso Henriques, como que antecipando as campanhas que, com os mais próximos, vinha, desde há algum tempo, congeminando. Por mim, só me dou satisfeito quando estivermos instalados no castelo de Silves!, exclamou Lourenço Viegas, conhecido por o Espadeiro, pela sua habilidade no manejo da espada contra a moirama.
Subitamente, todos começaram a
falar ao mesmo tempo, alimentados pelo entusiasmo gerado pela lembrança dos
últimos sucessos alcançados contra os sarracenos. Bradaram-se hurras, bravos e
vivas, gritou-se por Santiago e por Santa Maria, até que o rei resolveu pôr cobro
à algazarra. De novo com uma valente punhada na mesa, que a todos fez
estremecer. Sempre quero ver-vos, bravos cavaleiros, na hora da verdade. Agora,
porém, deixai falar o senhor dom João Peculiar, que desde Zamora não o oiço com
a atenção devida. E, mesmo aí, a nossa conversa versou apenas as questões
relacionadas com o tratado que Vossa Alteza firmou com vosso primo Afonso VII.
Por sinal um passo importante na concretização das nossas pretensões. Mas, se
me permitis, disso falaremos mais à frente.
Dom João Peculiar olhou
propositadamente o rei, que prontamente lhe correspondeu com um gesto de
concordância, e logo prosseguiu: Depois de todos aqueles leigos feitos prelados
à força, sem vocação, concubinários e debochados, cujos comportamentos mundanos
e licenciosos tanto feriram a Santa Madre Igreja, terem sido despojados das
suas investiduras, procedeu-se à aprovação dos trinta cânones propostos, a
começar pela homologação da concordata de Vórmia, em que o imperador renunciou
à capacidade de investir, pelo báculo e pelo anel, bispos de sua livre escolha.
Pecado que aqui não cometemos; quer dizer, todos os bispos que escolhemos foram
nomeados de comum acordo. Infelizmente não é isso que consta, Majestade. Não
acrediteis em tudo o que ouvis, senhor dom João. Olhai que de Leão sempre me
lançam as piores atoardas. E até em Roma e Pisa muitos adversários de peso tenho.
A quem o dizeis, Vossa Alteza.
Que desacreditar essa gente tem sido o meu principal trabalho. Mas como eu ia
contando, os cânones aprovados foram trinta. Muitos dízem respeito a questões
internas como as vestes dos sacerdotes e o casamento dos padres. Dois ou três, porém,
reputo da maior importância. E o primeiro dos quais é sobre a usura, o qual
convinha ser posto em prática sem demora, porque muitos judeus, valendo-se das
suas fortunas, põem e dispõem, a seu bel-prazer, da imposição de juros demasiado
altos aos necessitados que deles se socorrem.
E mesmo alguns príncipes e reis,
e, até nalguns casos, a própria Igreja se têm visto enredados nessa maldita
trama. Na verdade, senhor dom João Peculiar, eu próprio, para fazer face aos
custos da guerra aos infiéis, já tinha pensado em utilizar esse recurso. Só não
o fiz, ainda, porque as razias que vamos fazendo têm dado para as despesas.
Porém, uma empreitada como a tomada de Santarém ou de Lisboa... Deus há de
ajudar-nos, como sempre nos ajudou, quando for o momento azado, Majestade. Mas
dizia eu, um outro cânone igualmente importante trata da Paz de Deus. Paz de
Deus, senhor arcebispo João, o que é isso da Paz de Deus? Doravante fica
determinado que os lugares de culto, os conventos e as abadias são locais
sagrados, onde os príncipes e os reis não têm jurisdição. Nem sequer para
prender os perseguidos que neles busquem protecção». In António Costa Neves, O Sem
Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT
JDACT, António Costa Neves, Literatura, História, Geraldo Sem Pavor,