«(…) O Yazidismo é uma antiga religião monoteísta, transmitida oralmente por homens santos a quem foram confiadas as nossas histórias. Embora tenha elementos comuns com as muitas religiões do Médio Oriente, desde o Mitraísmo e o Zoroastrianismo até ao Islamismo e o Judaísmo, é, na verdade, uma religião única, que até os homens santos que memorizam as nossas histórias têm dificuldade em explicar. Penso na minha religião como se fosse uma árvore antiga com milhares de anéis, cada um a contar uma história no longo percurso dos yazidis. Muitas dessas histórias, infelizmente, são tragédias.
Hoje em dia, há apenas um milhão
de yazidis no mundo.
Desde que me conheço, e sei que também muito antes de eu nascer, a nossa
religião tem sido o que nos define e o que nos mantém unidos como comunidade.
Mas também nos tem tornado alvo de perseguição por parte de grupos maiores,
desde os otomanos aos baathistas de Saddam, que nos atacavam ou nos obrigavam a
jurar-lhes lealdade. Denegriram a nossa religião, chamaram-nos adoradores do
Diabo, sujos, e exigiram que renunciássemos à nossa fé. Os yazidis têm sobrevivido a
gerações de ataques com o objectivo de nos dizimar; matavam-nos, obrigavam-nos
a converter ou simplesmente expulsavam-nos da nossa terra e ficavam com tudo o
que possuíamos. Antes de 2014, já tínhamos sofrido setenta e três tentativas de
destruição por parte de poderes externos. Costumávamos chamar firman, uma palavra otomana, aos
ataques contra yazidis,
antes de aprendermos a palavra genocídio.
Quando ouvimos falar do pedido de
resgate pelos dois agricultores, toda a aldeia entrou em pânico. Quarenta mil
dólares, disseram os sequestradores às mulheres dos agricultores, por telefone.
Ou venham para cá com os vossos filhos para se converterem ao Islão como
família. Caso contrário, disseram, os homens seriam mortos. Não foi o dinheiro
que levou as esposas a romperem em lágrimas na frente do nosso mukhtar, ou líder da aldeia,
Ahmed Jasso; quarenta mil dólares era uma soma do outro mundo, mas era apenas
dinheiro. Todos sabíamos que os agricultores preferiam morrer a converter-se,
por isso os aldeões choraram de alívio quando, uma noite, os homens escaparam
por uma janela partida, fugiram pelos campos de cevada e apareceram em casa, vivos,
com terra até aos joelhos e ofegantes de medo. Mas os raptos não pararam.
Pouco tempo depois, Dishan, um
homem que trabalhava para a minha família, os Tahas, foi raptado de um campo
perto do Monte Sinjar, onde estava a guardar as nossas ovelhas. A minha mãe e
os meus irmãos levaram anos a comprar e a cruzar os nossos animais, cada um
deles era uma vitória. Orgulhávamo-nos das nossas ovelhas, guardávamo-las no
pátio da nossa casa quando não andavam a vaguear pela aldeia, tratávamo-las
quase como animais de estimação. A tosquia anual era uma celebração. Eu adorava
o ritual, a maneira como a lã macia caía no chão, como pilhas de nuvens, o cheiro
almiscarado que tomava conta da casa, os balidos baixos e passivos das ovelhas.
Adorava dormir debaixo dos grossos edredons que a minha mãe, Shami, fazia com a
lã, enfiando-a entre peças de tecido colorido. Por vezes apegava-me de tal
maneira a uma ovelha que tinha de sair de casa quando chegava a altura de abatê-la.
Quando Dishan foi raptado, tínhamos mais de uma centena de ovelhas, para nós,
uma pequena fortuna.
Lembrando-se da galinha e dos
pintos roubados por altura do rapto dos agricultores, o meu irmão Saeed
precipitou-se para a carrinha da família e dirigiu-se ao sopé do Monte Sinjar,
a uns vinte minutos de distância, agora que a estrada estava pavimentada, para
ver o que tinha acontecido às ovelhas. Levaram-nas, de certeza, lamentámo-nos. Aquelas
ovelhas eram tudo o que tínhamos. Mais tarde, quando Saeed ligou à minha mãe,
soava confuso. Só levaram duas, relatou, um velho carneiro lento e uma pequena
borrega. As restantes estavam a pastar alegremente na erva verde-acastanhada e
seguiram o meu irmão de volta a casa. Rimo-nos todos e ficámos muito aliviados.
Mas Elias, o meu irmão mais velho, estava preocupado. Não percebo, disse. Aqueles
aldeões não são ricos. Porque deixaram as ovelhas para trás? Ele pensava que
isso tinha que ter algum significado». In Nadia Murad, Eu Serei a Última, Penguin
Random House, Grupo Editorial, Editora Objectiva, 2021, ISBN 978-989-784-358-7.
Cortesia de EObjectiva/JDACT
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