«(…) No dia a seguir ao rapto de Dishan, Kocho estava um caos. Os aldeões juntavam-se à porta de casa e, juntamente com os homens que se revezavam no novo posto de controlo à entrada das muralhas da nossa aldeia, vigiavam todos os carros desconhecidos que passassem por Kocho. Hezni, um dos meus irmãos, regressou a casa do trabalho, era polícia em Sinjar, e juntou-se aos outros homens da aldeia que discutiam ruidosamente o que fazer. O tio de Dishan queria vingança e decidiu liderar uma missão a uma aldeia a leste que Kocho, liderada por uma conservadora tribo sunita. Vamos capturar dois dos pastores deles, declarou, enraivecido. Assim vão ter de nos devolver Dishan! Era um plano arriscado e nem toda a gente apoiava o tio de Dishan. Até os meus irmãos, que tinham herdado do nosso pai a coragem e a prontidão para a luta, estavam divididos quanto ao que fazer. Saeed, que era apenas um par de anos mais velho do que eu, passava muito do seu tempo a fantasiar com o dia em que provaria finalmente o seu heroísmo. Era a favor da vingança, enquanto Hezni, mais de uma década mais velho e o mais empático de todos nós, achava que era demasiado perigoso. Mesmo assim, o tio de Dishan levou todos os aliados que conseguiu reunir, raptou dois pastores árabes sunitas, levou-os para Kocho, fechou-os em casa e esperou.
A maior parte das disputas entre
aldeias era resolvida por Ahmed Jasso, o prático e diplomático mukhtar, que alinhava com a opinião
de Hezni. A nossa relação com os vizinhos sunitas já é complicada, disse ele. Quem
sabe o que irão fazer se tentarmos lutar com eles. Além disso, avisava, a situação
fora de Kocho era muito pior e muito mais complicada do que imaginávamos. Um
grupo que se autodenominava Estado Islâmico, ou ISIS, que nascera sobretudo
ali, no Iraque, e crescera ao longo dos últimos anos na Síria, ocupara outras
aldeias tão perto de nós que conseguíamos ver as suas figuras vestidas de negro
quando passavam nas carrinhas. Eram os responsáveis pelo rapto dos nossos
pastores, disse-nos o mukhtar. Só vão piorar as coisas, disse
Ahmed Jasso ao tio de Dishan. E ainda mal tinha passado meio dia desde que os
pastores sunitas tinham sido raptados quando os libertaram. Dishan, porém, continuou
preso.
Ahmed Jasso era um homem
inteligente, a família Jasso tinha décadas de experiência na negociação com as
tribos árabes sunitas. Era a eles que toda a gente na aldeia recorria com os
seus problemas e, mesmo fora de Kocho, eram conhecidos como diplomatas hábeis.
Mesmo assim, alguns de nós perguntávamo-nos se, desta vez, Ahmed Jasso não
estaria a ser demasiado cooperante, se não estaria a enviar aos terroristas a
mensagem de que os yazidis
não se protegiam. Nessa altura, a única coisa que se interpunha entre nós e
o ISIS eram os combatentes curdos iraquianos, os chamados peshmergas, que tinham sido
enviados da região autónoma curda para proteger Kocho quando Mossul caiu, quase
dois meses antes. Tratámos os peshmergas
como honoráveis visitantes. Dormiam sobre paletes na nossa escola e, todas
as semanas, uma família diferente matava um cordeiro para os alimentar, um
enorme sacrifício para os pobres aldeões. Eu também os admirava. Ouvira falar
de mulheres curdas da Síria e da Turquia que lutavam contra os terroristas e
andavam armadas, e a ideia fazia-me sentir corajosa. Algumas pessoas, incluindo
alguns dos meus irmãos, pensavam que deveríamos poder proteger-nos.
Queriam criar postos de controlo
e o irmão de Ahmed Jasso tentou convencer as autoridades curdas a deixá-lo
formar uma unidade peshmerga yazidi,
mas foi ignorado. Ninguém se ofereceu para treinar os homens yazidis nem os encorajou a
juntarem-se à luta contra os terroristas. Os peshmergas garantiram-nos que, enquanto ali estivessem, não
tínhamos que nos preocupar, e que estavam tão decididos a proteger os yazidis como a proteger a
capital do Curdistão iraquiano. Mais depressa deixamos cair Erbil do que Sinjar,
diziam. Disseram-nos para confiar neles, e foi o que fizemos. Mesmo assim, a
maior parte das famílias em Kocho mantinha armas em casa, as débeis Kalashnikov, um ou dois facalhões
usados normalmente para matar os animais nas festividades. A maior parte dos
homens yazidis,
incluindo os meus irmãos com idade suficiente para isso, tinham trabalhado nas
patrulhas de fronteira ou na polícia após 2003, quando houve vagas, e nós tínhamos
a certeza de que, desde que os profissionais vigiassem as fronteiras de Kocho,
os nossos homens conseguiriam proteger as suas famílias». In Nadia Murad, Eu Serei a
Última, Penguin Random House, Grupo Editorial, Editora Objectiva, 2021, ISBN
978-989-784-358-7.
Cortesia de EObjectiva/JDACT
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