«(…) Agora que já temos as barrigas mais aconchegadas, contai-me, dom João Peculiar, meu bom amigo, que novas trazeis de Latrão, que tanto tempo por lá vos demorastes? Muitas e boas, senhor meu rei. E não só da Santa Madre Igreja, mas também da nossa missão de vos saberdes reconhecido pelo Santo Padre. Pois, começai por estas, que são mais interessantes, e deixai as outras para a ceia, que vem já a seguir. Basta que vos diga, por ora, que o nosso serviço ficou bem encaminhado, mas é forçoso que vos fale, primeiro, das outras para que melhor percebais a delicadeza da nossa missão e os ganhos que já alcançámos.
Por momentos, o rei pareceu
enfadar-se. O seu interesse mais premente residia na desejada bula com que o papa
haveria de lhe reconhecer o reino e o reinado. Há cinco anos que dom João Peculiar
vinha fazendo todos os esforços, em longas e trabalhosas viagens a Pisa, para lhe
conseguir a malfadada bula. Afonso Henriques reconhecia-lhe a persistência; por
isso susteve a respiração, passou o punho da camisa pela boca, lustrosa da gordura
do reco, e assentiu: Pois sim, dom João, falai então, primeiro, do concílio e do
que lá se passou. Ora, este II Concílio de Latrão, o décimo da história da igreja...
O décimo ou o décimo primeiro, senhor dom João?, interrompeu bruscamente,
depois de um prolongado arroto e entre duas dentadas, dom Teodoro. Décimo, dom
Teodoro. Sabeis bem que aquele Latrocínio de Efeso, convocado pelo imperador Teodósio
II de Constantinopla, não é reconhecido pela verdadeira Igreja de Roma.
Sim, sim, mas prossegui, senhor dom
João, logo atalhou o rei, pondo ordem nas prioridades. Como sabeis, estava em causa
o grande diferendo que opunha o nosso papa Inocêncio II ao cardeal Pierleone, que,
à socapa, se tinha feito eleger como Anacleto II. E sendo este filho de um banqueiro
pontifício e apoiado pelas principais famílias da nobreza, com excepção dos Frangipani,
desde logo ocupou o Vaticano, enquanto o nosso venerando papa Inocêncio teve de
ficar em Pisa. Aprouve Deus que Pierleone, que a terra lhe seja leve, se finou a
25 de Janeiro de 1138. Então, o nosso querido papa Inocêncio II resolveu
convocar, para Abril de 1139, o maior concílio ecuménico que a cristandade já
presenciou. Olhai que mais de mil prelados de todas as partes do mundo cristão a
ele acorreram, numa clara demonstração da vitalidade da nossa Igreja e de incontestável
apoio ao múnus do nosso supremo bispo.
E depois, senhor dom João?, impacientou-se,
mais uma vez, Afonso Henriques, dando com o punho direito na mesa, e, com isso,
fazendo saltar algumas lascas de pão. Pois, foi uma vitória concludente, porque
todos os que tinham sido nomeados pelo usurpador, bispos, arcebispos e abades, foram
obrigados a depor o pálio, o anel e o báculo. Depois o concílio ocupou-se daqueles
heréticos, como Arnaldo de Bréscia, e todos os espirituais que advogam os ideais
de pobreza, de ascetismo e de despojamento. Enfim, o regresso à pureza original,
como se fosse possível o mundo andar para trás. Gente lerda, senhor dom João, interrompeu
o senhor Gonçalo Mendes Maia, que permanecera atento e, até então, calado». In António
Costa Neves, O Sem Pavor, Saída de Emergência, 2022, ISBN 978-989-773-439-7.
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