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«Fui encontrar fotografias antigas do meu pai na velha secretária da casa da quinta. Estavam juntas com desenhos dos netos, quando eles ainda tinham a cabeça povoada de piratas e de índios. Com estas imagens nas mãos, de repente veio-me o cheiro intenso do rosmaninho e da giesta, a magia dos dias com ele, no meio da serra, desbravando os campos, à procura dos cravinhos silvestres, dos cardos, das alcachofras de S. João, dos grilos, na ilusão, por vezes, de que o meu pai não era apenas meu pai, mas também meu irmão.
Debruçados sobre o chão, no meio das espigas e das ervas altas, as coisas simples que ele dizia e que eram tão profundas! O deslumbramento que só ele era capaz de ter, a sua transparência, a sua permanente atenção... Falávamos de tudo, eu, com ele, era capaz de falar de tudo.
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Encostado a uma figueira, colhendo aqui e ali um figo, falava-me das amolgadelas da vida, dos tropeções que foi dando, da dificuldade que teve em sair «do nu e do cru» - como ele gostava de dizer - para um caminhar em frente.
Depois, como parado no tempo, pensativo, longe (mas nunca distante), voltava a falar-me dos pássaros, dos melros, e perguntava-me se eu já tinha ouvido, de madrugada, o cantar dos rouxinóis, enquanto eu olhava embevecida as suas mãos inquietas. As suas mãos... os seus cabelos brancos, longos e rebeldes... - «E as azinheiras? Gostas mais de azinheiras ou de sobreiros?», perguntava-me.
Ficávamos muitas vezes também em silêncio, a olhar a terra dura, observando as carreirinhas infinitas de formigas, imaginando as suas conversas quando se encontravam e esbarravam umas com as outras, se algumas na verdade seriam mais apressadas que outras...
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Na vida dos humanos, eu sabia que sim, que havia empurrões, que havia rasteiras... nas formigas também? E o meu pai sorria e o Seu Sorriso era sempre doce. As suas sobrancelhas grossas e despenteadas elevavam-se ligeiramente, na face direita surgia uma covinha prolongada e o seu riso era interrompido, mas ele continuava alegre.
Gostava muito de o olhar, porque, mesmo quando o meu pai estava sério, nunca tinha um ar sombrio ou impenetrável. Havia sempre uma luzinha a brilhar nos seus olhos, que nos incitava a falar, a fazer perguntas. E havia sempre tempo, disponibilidade e um gesto terno que nos arrastava na descoberta de um novo diálogo.
Como o meu poeta diz: «Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do Verão, aos barcos no vento, gosto das palavras lisas como Seixos, rugosas como pão de centeio...», o meu pai dizia que gostava das palavras virgens e absolutas, das vogais doces e prateadas, com sabor a música...». In Feliciano Falcão, Memória Viva, António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.
Continua.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT