quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Eduardo Brazão. Em Demanda do Cataio. Parte 1. A Viagem de Bento de Goes à China 1603-1607. «Partia em 1425 com Álvaro Vaz de Almada e alguns homens de armas. Visitou a Inglaterra, onde o rei Henrique VI o cobriu com o manto azul da Jarreteira, em preito de homenagem, passou depois à Flandres, hóspede do duque de Borgonha»

Cortesia de europaamerica

O Livro de Marco Polo em Portugal
«Na relação dos livros de D. Duarte que o códice da Cartuxa Eborense contém lê-se esta singela rubrica – “Marco Paulo latim e lingoagens em hum volume”.

Tratava-se, certamente, da versão latina do frade Francisco Pipino e duma tradução apensa, talvez do próprio punho do infante D. Pedro, o das “Sete Partidas”, que, segundo o dizer da Lisboa quinhentista, refere-o o editor Valentim Fernandes, trouxera de Veneza, como uma jóia rara, o precioso manuscrito. Guardado avaramente no Tombo Real, já no tempo de D. Manuel andava vestido das melhores galas, «Outro liuro de letra de pena que se chama Marco Paulo coberto de veludo cremesym com duas brochas de prata anylada».
Embora na Veneza do século XIII o descritivo desse viajante sem par deixasse bastantes almas incrédulas e sorrisos na passagem, que se traduziam no epíteto sarcástico de “Messer Marco Milioni” e da “Corte del Milione”, que veio até nossos dias, ele, no entanto, abria numa Europa ascética um fundo sulco de incontida ambição quase pagã. Marco, o joalheiro, trouxera as mãos cheias de rubis de Ceilão, vermelhos de sangue palpitante, «de fogo ardente» e ainda de safiras da cor do Céu, de topázios chispando como oiro polido, de ametistas de does tonalidades de violeta; também brilhantes de Motupallé a que ele chamou Morfili, pérolas da lagoa de Cayndu, que muitos hoje supõem ser certo rio de Yu-nam. Deslumbravam as raras peças de porcelana vindas de Zayton como lhe chamou, talvez King-tê-chên no Kiangsi, e as sedas incomparáveis de Shan-si.

Vinte e seis anos se ausentara Marco Polo, seu pai Nicolau e seu tio Mafeu da corte esplendorosa dos Doges. Mas ao atirar sobre a mesa do banquete festivo esse punhado de cintilações, demonstrava aos parentes duvidosos que ele e os outros dois tinham sido, na realidade, os caminheiros incansáveis dos desertos da Pérsia, das estepes do Pamir, das montanhas do Tibet. Haviam estado na corte de Kubilai Khan, percorrendo o “Cataio”, a Mongólia, Burma, Sião, Samatra, Java, Ceilão, as Índias... E mais do que a prova, muito mais certamente, Marco Polo começava a desdobrar nesse momento, à Europa Medieval, a carta imensa dos fabulosos reinos da Ásia.

Cortesia de leilao

O relato das viagens do Veneziano, feitas 1ogo à sua chegada aos que se aproximavam para ouvir, foi ditado depois por ele, na prisão de Génova, quando vencido e cativo em guerra das duas Repúblicas rivais. Fora um certo “Messire Rustacians de Pisa”, Rusticiano ou Rustichello, que alguns pretendem identificar com um compilador dos romances da Távola Redonda, que pusera em escrita e na língua francesa. «in vulgari gallico», as “Viagens” que se tornariam famosas. A ele se deve, quase anónimo prisioneiro,.não terem ficado apenas na memória dos ouvintes de Marco o descritivoduma grande aventura que ia lançar a Europa noutra maior ainda.

Henri Cordier, nas preciosas notas com que completou a obra monumental de Yule, dá como conhecidos 85 manuscritos das viagens, recolhidos hoje nas bibliotecas e arquivos da Europa. A obra espalhara-se assim pelos quatro cantos do Velho Continente, acendendo chamas altas em tantos corações. E desde 1477, em Nuremberg os novos prelos foram-na editando, sendo a do nosso Valentim Fernandes a sexta na cronologia geral. D. Pedro, companheiro de seu pai, D. João I, na conquista de Ceuta, pertencia a essa geração de “ínclitos infantes” que abriram em Portugal o maior capítulo da sua História.

Tipo inglês, por ascendência materna, como o descreve Rui de Pina, tinha no sangue todo o borbulhar da seiva lusíada. A ansiedade de descobrir horizontes novos, a paixão de projectar o acanhado país cujos limites tinham sido traçados no solo pela espada forte dos primeiros Afonsos, a intuição genial de quebrar um horizonte estreito e de o prolongar em volta dum Mundo então desconhecido, levaram-no a partir no intuito próximo que foi apanágio e glória de Portugal, combater o infiel, projectar a Cruz nas terras pagãs, defender o Credo que era a alma da maior civilização que o Mundo ainda até, hoje conheceu. Ia oferecer os seus braços fortes de guerreiro, já baptizados em lutas africanas, ao imperador Segismundo da Hungria e da Boémia, que vinha sendo ameaçado pelo Turco.

 
Cortesia de leiloes

Partia em 1425 com Álvaro Vaz de Almada e alguns homens de armas. Visitou a Inglaterra, onde o rei Henrique VI o cobriu com o manto azul da Jarreteira, em preito de homenagem, passou depois à Flandres, hóspede do duque de Borgonha. Em 1427 estava na companhia do imperador, batendo-se como qualquer português de então o sabia. Mas, pouco depois, talvez naquela fraqueza tão nossa no perseverar, abandonava o exército e renunciava ao Ducado de Treviso em que tinha sido investido. Foi para Veneza em 1428, visitava pouco depois, em Roma, o papa Martinho V. Dirigiu-se, em seguida, a Barcelona, e em Setembro desse ano já estava de regresso à Pátria. Trazia o infante na sua bagagem, como se presume, o famoso manuscrito do Veneziano e certamente também na alma o apoio e incitamento à obra de seu irmão Henrique, que em Sagres, rodeado de cartógrafos, procurava lançar Portugal para o primeiro plano da História do Mundo.
Ele fora, na sua viagem pelas “Sete Partidas”, a encarnação da alma ardente da aventura que se preparava.

D. Henrique era o cientista que que ía tornar possível o grande sonho, na certeza dos cálculos e em altas aspirações da mais pura espiritualidade cristã. Poderia ter sido indiferente à obra do Infante de Sagres a revelação oriental de Polo?». In Eduardo Brazão, Em Demanda do Cataio, A Viagem de Bento de Goes à China, 1603-1607, Gráfica Imperial, 2ª edição, Lisboa 1969.

Cortesia de Gráfica Imperial/JDACT