Carl Friedrich Gauss, o matemático que criou a técnica dos mínimos quadrados
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Asteróides e mínimos quadrados
Num artigo de 1960 que ficou célebre, o Nobel da Física Eugene Wigner (1902-1995) falava da eficácia da matemática e dizia que esta ultrapassava o razoável. Conta-se uma história sobre dois amigos que tinham sido colegas de liceu e que estavam a falar dos seus empregos», relata Wigner.
- «Um deles tornou-se estatístico e estudava as tendências de crescimento da população. Mostrou um trabalho ao amigo. Começava, como é frequente, com a distribuição de Gauss, e o estatístico explicou os símbolos para a população actual, a média e por aí adiante. O amigo estava um pouco incrédulo e começou a desconfiar que o outro estava a brincar. “Como podes saber isso?” perguntou. “E que símbolo é este aqui?” Oh, disse o estatístico, isso é π,'. O quê?' 'O quociente da circunferência pelo seu diâmetro. Ah, agora estás a exagerar na brincadeira, disse o amigo.É evidente que a população não tem nada a ver com o rácio entre a circunferência e o seu diâmetro».
Os entendidos podem achar natural que o número π (pi) apareça nos estudos da população, pois é usado na distribuição normal, ou de Gauss, muito utilizada em estatística. Mas mesmo os matemáticos terão dificuldade em explicar de forma simples e convincente a maneira como esse símbolo se tornou indispensável em tantas áreas. E a relação entre o número π e os estudos da população é ainda mais surpreendente. Está para além do razoável, como diria Wigner.
Só quem não pense no assunto não se surpreende com a extraordinária eficácia da matemática para a descrição, compreensão e previsão dos fenómenos naturais. Mas talvez em nenhuma ciência esse poder seja tão surpreendente como na astronomia e na física.
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Nos primeiros meses do século XIX a eficácia da matemática ficou demonstrada de forma espectacular. Na altura, os astrónomos procuravam um planeta desconhecido que suspeitavam existir entre Marte e Júpiter. Com efeito, tinha-se detectado uma regularidade nas posições dos planetas, a chamada lei de “Titius-Bode”, e verificara-se um grande vazio entre Marte e Júpiter. Esse vazio, suspeitava-se, deveria estar preenchido por um planeta ainda não descoberto.
Forjou-se uma cooperação internacional entre astrónomos, que se auto-denominou jocosamente «Polícia Celestial». Foi a primeira vez que a investigação científica se organizou nessa escala internacional. Cada astrónomo se responsabilizou por estudar uma parte do céu. A faixa do zodíaco, em que o Sol, a Lua e os planetas descrevem o seu movimento aparente, foi dividida em sectores, de forma a nada deixar escapar. O céu foi observado por astrónomos de vários países noite após noite, em busca de algum ponto luminoso que se deslocasse lentamente contra o fundo de estrelas.
A honra da descoberta caberia a Giuseppi Piazzi (1746-1826), director do observatório de Palermo, que, em 1 de Janeiro de 1801, no primeiro dia do novo século, encontrou um objecto desconhecido, aparentemente na órbita do almejado «quinto planeta». Piazzi foi cauteloso e admitiu que se tratasse apenas de um cometa. Mas os membros da Polícia Celestial não tiveram dúvidas. Tratava-se do planeta em falta entre Marte e Júpiter. O problema foi que nessa altura o objecto tinha desaparecido no crepúsculo, aparecendo já muito perto do Sol para poder ser observado. Quando, em princípios do Outono de 1801, o objecto deveria reaparecer no céu da madrugada, foi impossível localizá-lo. Heinrich Olbers (1758-1840) e vários astrónomos fizeram os seus cálculos, mas não conseguiram apontar para o astro. Foi então que entrou em cena um matemático alemão, na altura com 24 anos, mas considerado já um dos maiores génios da história da matemática: Carl Friedrich Gauss (1777-1855). O jovem Gauss exultou com a possibilidade de pôr em prática uma sua teoria, pois há alguns anos que tinha vindo a estudar o problema do cálculo de órbitas «sem quaisquer pressupostos teóricos, a partir de observações que não englobassem um período longo», como escreveu na altura.
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Gauss estimou a órbita com base num método novo de combinar observações e, com base nelas, de estimar os parâmetros de uma função, neste caso uma órbita. Esse procedimento veio a ser conhecido como o “método dos mínimos quadrados” e resolveu um problema com o qual há décadas se debatiam as melhores mentes europeias. Os cálculos de Gauss forneceram estimativas para a órbita do objecto com precisão suficiente para Franz von Zach (1754-1832) o redescobrir a 31 de Dezembro de 1801, praticamente um ano depois de Piazzi o ter encontrado. Encontrava-se a meio grau de distância angular da posição prevista por Gauss. Na noite seguinte, Olbers visualizou-o também. A comunidade científica estava eufórica. O sistema solar parecia estar outra vez completo!
Pensou-se, na altura que se tratava de um planeta como os já conhecidos, e foi-lhe dado o nome de Ceres. Mas em 1802, quando se estimou o seu diâmetro, obteve-se apenas 260 quilómetros (sabe-se hoje que o diâmetro de Ceres é de cerca de mil quilómetros, quase um terço do da Lua). Não se tratava afinal de um planeta como os restantes. Mas não faltaram surpresas nos anos seguintes, quando por perto se descobriu sucessivamente,
- Palas (1802),
- Juno (1804) e
- Vesta (L807), que é o mais brilhante de todos esses pequenos corpos celestes e que é possível observar a olho nu.
Daí para cá, descobriram-se muitos milhares de asteróides, estando catalogados cerca de 40 mil.
Como é possível que o número π, usado na distribuição de Gauss para reduzir observações diversas a uma fórmula simples, tenha ajudado à descoberta de Ceres e de muitos outros objectos celestes?
A matemática, eficaz para além do aparentemente razoável, é a misteriosa gramática da ciência moderna». In Nuno Crato, A Matemática das Coisas, Gradiva, Sociedade Portuguesa de Matemática, Abril 2008, ISBN 978-989-616-241-2.
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