Cortesia de foriente
Reis e Monges. Notas sobre a Birmânia além dos Portugueses.
«Tem-se contraposto às mudanças políticas a continuidade cultural do país. É o caso das crenças religiosas e do conceito de realeza, cuja sobrevivência passo a analisar.
NOTA: A língua de arracaneses e birmanes manteve-se semelhante, diferentemente do que aconteceu no império mon-birmane. Assim, no fim do séc. XVI Ugga Byan fez sucesso na corte mon-birmane de Pegu onde os seus versos podiam ser entendidos. O mesmo não acontecia em relação às línguas das duas principais etnias que integravam o império. Apesar da política de casamentos mistos levada a cabo por Tabin-shwei-hti e Bayin-naung em meados do séc. XVI, em 1642 o rei mandava repetir um interrogatório aos monges não birmanes por recear não terem os mons «seguido as instruções, devido a dificuldades linguísticas». O arco montanhoso que circula a Birmânia separando-a da Índia a Norte (Montes Kachin) e a Oeste (Chinvaga e Patkai) prolonga-se para sul pela cadeia do Arracão que a separa da região do mesmo nome. A leste daquele arco, o planalto Shan, que a separa da China, do Laos, e da Tailândia, continua também para sul pelo Tenasserim, ao longo da península Moulmein malaia até ao istmo de Kra.
Por outro lado, é a Norte nos montes Kachin que nascem os dois rios cuja confluência forma o Irrauadi. São também as montanhas do norte a fonte dos afluentes do Irrauadi, como o Chindwin que se lhe junta a cerca de 180 km de Mandalay. A leste destes rios correm o Sittang, que desemboca perto de Rangum, e o Saluen, que desce dos Himalaias até Moulmein, no Tenasserim.
Entre os elos culturais que ligavam arracaneses e mons-birmanes, o mais importante foi a religião. A Birmânia foi o primeiro país da Ásia do Sueste a aceitar o Budismo, e tornou-se a partir do séc. XI importante centro do Budismo “Theravada”, uma escola do budismo do pequeno veículo ou “Hinâyâna” que suplantou naquelas paragens o do grande veículo ou “Mahâyâna” que inicialmente aí coexistira como Hinduísmo.
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Mesmo depois de o Budismo se ter tornado a religião oficial tanto de mons-birmanes como de aracaneses, subsistiram conceitos e rituais do Hinduísmo bramânico. Foram os casos da cosmologia, e do panteão de divindades conhecidos pelos “Nats”, elementos sobrenaturais e religiosos importantes na cultura da Birmânia. Incorporados pelo Budismo, os “Nats” foram aumentados em número, os 37 “Nats” do panteão birmane reduziam-se a 22 no período anterior aos primeiros impérios. Eram divindades locais e regionais e também protectoras de actividades várias como a fertilidade e a guerra. Taylor faz notar que enquanto crença comummente aceite, tinha um papel unificador importante. Constituía elo de ligação entre as regiões do país, e também entre o passado e o presente. Os governantes serviam-se deles para a sua legitimação, apregoando-se ligados aos espíritos, seus ancestrais, e aos primeiros reis.
O budismo Theravada inicialmente adoptado pelos mons, ao que parece através dos seus contactos com Ceilão, propagou-se na Birmânia durante o chamado Império de Pagan, primeira formação política centralizada criada pelos birmanes, sob cuja égide se unificou o país entre 1044 e 1287. No séc. XI o rei Anawratha de Pagan submeteu os mons e entre os vários prisioneiros de guerra transportados para a Alta Birmânia, seguiram a família real e monges com o espólio dos mosteiros budistas. A cultura mon conquistaria Pagan. A sua língua passou a figurar nas inscrições reais, o budismo Theravada tornou-se religião oficial e o rei Anawratha seu devoto patrono. Desde então reis e imperadores proclamaram-se protectores do Budismo, religião que sobreviveu quer à dissolução de Pagan quer à ascensão e queda de posteriores impérios.
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A comunidade dos monges budistas, o “sangha”, cresceu a partir do séc. XI tornando-se juntamente com a realeza a principal instituição do país. A interdependência entre o Estado e o clero era acentuada. A realeza dependia da legitimação dos monges porque o rei, segundo as concepções budistas, representava a religião e devia governar de acordo com os seus preceitos. Por seu lado o “sangha”, desprovido de bens materiais, dependia economicamente do Estado: através de doações de terras e outros bens aos mosteiros, os reis asseguravam o seu mérito na existência presente e uma melhor existência futura.
Tem-se discutido até que ponto o crescimento da propriedade religiosa prejudicou a realeza, pois as extensas terras dos monges eram isentas de impostos, e quem as trabalhava de prestação de serviço militar. O Estado via assim as «suas terras desprovidas de mão-de-obra, os seus exércitos de gente, e os seus cofres de rendimentos. Para evitar abusos, de tempos a tempos os reis levavam a cabo reformas “sansana”, i. e., religiosas. O resultado teórico era a purificação da ordem através da conservação da ortodoxia budista, o que na prática revertia a favor do Estado, já que parte dos bens doados eram retirados. Por essas razões Aung Thwin sugeriu que as perdas a favor do sector religioso constituíram o maior obstáculo interno à centralização. Lieberman, partindo da argumentação daquele historiador, que considera o primeiro a focar o papel das tensões internas no declínio administrativo, foi mais longe. Procurou mostrar que as reformas lograram manter o “sangha” sob controle, o que não aconteceu em relação a outros grupos que, como os monges, se ligavam ao trono por laços de competição e dependência: caso dos chefes seculares, que constituíam talvez a maior ameaça interna à autoridade régia. Argumentou ainda que as relações entre realeza e “sangha” não foram estáticas:
- «o poder dos monges ameaçou os imperadores de Pagan e posteriormente os reis de Ava, mas a partir do séc. XVII foi limitado eficazmente».
In Maria Ana Masques Guedes, Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia, ca 1580-1630, Fundação Oriente, 1994, ISBN 972-9440-28-X.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT