Armas da família de Avis
Cortesia de halp
«Mesmo numa rápida abordagem, somos obrigados a reconhecer a ocorrência de importantes novidades no domínio da literatura produzida e consumida em Portugal, nos meios da alta nobreza, entre os anos de 1350 e 1450. A primeira grande surpresa parece encontrar-se no âmbito da “literatura poética” e tem que ver com o acentuado declínio da actividade lírica, isto é, com a «decadência da grande escola trovadoresca galego-portuguesa». Na verdade, são extremamente reduzidos os vestígios de uma literatura poética. Tal facto não deve dissociar-se do ambiente de tensão em que vive a sociedade portuguesa na altura, e que se reconhece facilmente como pouco estimulante de uma actividade lírica continuada; alem disso, encontrará ainda explicação suplementar noutro tipo de situações. É o caso do desfasamento entre a linguagem poética e os problemas dominantes da «nova» sociedade portuguesa, particularmente no meio nobre, os quais encontravam na expressão em prosa um instrumento bem mais adequado à sua veiculação. Na vizinha Castela, os Cancioneiros do século XV, como é o caso do “Cancioneiro de Baena”, confirmam a decadência galaico-portuguesa. Nestas condições, somos obrigados a esperar pela segunda volta de Quatrocentos, cuja nova ambiência e fronteiras estão acima de qualquer discussão, para ver ressuscitar a poesia lírica portuguesa. O “Cancioneiro de Resende”, ele próprio denunciador de uma ligeireza e de um sabor a «serões do paço», algo difíceis de encontrar a algumas décadas antes, aí está para o confirmar.
Com efeito, à evasão lírica a nova sociedade cortesã parece ter preferido a efabulação romanesca. Daí a presença de uma importante “literatura novelística”, que praticamente se confunde com a difusão, em Portugal, da tradição narrativa arturiana, originária do norte da Europa. Trata-se dos romances de cavalaria inspirados na lenda do rei anglo-saxão Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, cujo famoso ciclo de aventuras terá sido, nos inícios do século XIII, objecto de uma vasta refundição, na sequência da qual uma das suas versões, conhecida pelo nome de “Post-Vulgata”, veio a ter uma enorme voga na Península Ibérica. Com idêntica função formativa, a «literatura histórica» conheceu nesta altura enormes progressos. As bases haviam sido já lançadas na 1ª metade do século XIV.
Cortesia de halp e simecqcultura
Existiu, paralelamente, nos meios nobres, uma “literatura técnica”, cujo lastro encontramos nas «Obras dos Príncipes de Avis». A raiz desta tradição parece remontar ao tempo de D. Dinis, cujo físico pessoal, mestre Giraldo, terá sido o autor de um “Livro D’Alveitaria”. Nos finais do século XIV, Pero Menino, falcoeiro de D. Fernando, escreveu, por ordem do monarca, um “Livro de Falcoaria, que, segunso Lopes de Ayala (cronista castelhano) se encarregaria de copiar, durante o seu encarceramento em Portugal. E no século XV, ou já no século XVI, como informa Mário Martins, aparecerá um “Livro de Cetraria e experiências de alguns caçadores”.
Na primeira metade do século XV, surge um género de literatura conhecido pelo nome de “espelhos de príncipes” cujas características julgo clarificarem substancialmente a natureza e o significado da viragem cultural que se operou então em Portugal. Na Baixa Idade Média, o príncipe era frequentemente apresentado como o “espelho” ou “exemplo” das virtudes, ou das misérias, de toda a comunidade. Além disso, o pensamento medieval partilhava uma “concepção antropormófica da sociedade”, isto e, a sociedade era concebida como um brande organismo colectivo, cujo funcionamento e equilíbrio se garantia pela cooperação, autónoma mas coerente de todos os seus membros. Estas ficções, de tão longa e variada expressão na Idade Média, ajudam a compreender os pressupostos de uma produção literária que se instalou, nos séculos XIV e XV, nos meios nobres mais próximos da corte. Nestas condições, a tradição moralizadora da cultura medieval, isto e, o seu espírito de «codificação dos comportamentos individuais e sociais» surgiu aplicada na Baixa Idade Média, a uma “arte de bem governar”. Assim terão nascido os «espelhos de príncipes». Creio que a esta viragem cultural corresponderão algumas novidades verificadas no quadro das “influências externas” que então se abateram sobre a cultura portuguesa, e de que me parece oportuno destacar as de matriz francesa, italiana e inglesa, e, subsidiariamente, castelhana e flamenga. A influência francesa sobre a nossa cultura manteve-se neste período, a um nível de considerável importância. O que ficou a dever-se à intensificação da tradição novelística entre nos e ao florescimento da literatura dos «espelhos». De resto, as constantes relações politicas com a casa de Borgonha continuavam a permitir a divulgação, em Portugal, de alguns dos nomes mais importantes da cultura francesa, como Machault ou Cristina de Pisano.
Cortesia de wikipedia
O contributo italiano para a cultura portuguesa da primeira metade do século XV é talvez o que mais tem chamado a atenção dos estudiosos. Tradicionalmente balizada em torno do infante D. Pedro em Itália, na década de vinte e no decurso da sua célebre viagem, a influência cultural italiana em Portugal deve ser apreciada numa óptica mais alargada, que recorde a precocidade das relações comerciais entre os dois países, existentes desde D. Dinis, o intercâmbio cultural estabelecido com Florença nos inícios do século XIV e a presença de letrados portugueses em Itália, entre 1350 e 1450.
Neste último aspecto, é imprescindível destacar, entre várias outras, a figura do abade Gomes, geral da Ordem Camaldulense e núncio e visitador apostólico dos Mosteiros de Portugal, mais tarde prior de Santa Cruz de Coimbra, residente e homem de notável prestígio na notável senhoria florentina, em cuja abadia o infante D. Pedro terá recebido e onde terá podido conhecer obras como o “de Beneficiis” de Séneca, o “De Officiis” de Cícero ou até a “Divina Comédia” de Dante.
No que diz respeito à Inglaterra, é de referir que os rituais de cavalaria, bem como o espírito que lhe subjaz, parecem ter-se generalizado em Portugal sob a influência das estreitas relações com a Inglaterra desenvolvidas a partir dos finais do século XIV e de que a presença de D. Filipa de Lencastre na primeira corte de Avis não será senão uma das suas mais importantes expressões. Quanto a Castela, lembrar a passagem pelo nosso reino, em missão diplomática, desenvolvida junto da corte entre fins de 1421 e princípios de 1423, do bispo de Burgos, Alfonso de Cartagena, famoso humanista que, segundo Piel, compôs para D. Duarte um “Memorial das Virtudes” e vulgarizou o “De Casibus Virorum” de Boccacio, e a quem dedicou ainda a versão espanhola da “Retórica”, de Cícero.
No que se refere à influência oriunda da Flandres, devido aos contactos com a corte da Borgonha estabelecidos por D. Isabel, ela parece repousar numa intensa actividade artística como pretexto para o estabelecimento de contactos muito íntimos com Portugal ao longo do século XV, facto do qual o “Livro de Horas de D. Duarte”, de origem flamenga, parece constituir um magnífico testemunho.
Ao utilizar a «prosa» e observe-se que, de acordo com Saraiva e Lopes, a tradução portuguesa do ciclo arturiano do Graal é o mais antigo texto português em prosa literária, simbolizando a “Demanda” uma prosa quase feita e apta à elaboração de obras originais.
As obras dos Príncipes de Avis
À literatura produzida pelos grandes paladinos da corte de Avis, ao longo da 1ª metade do século XV, correspondem quatro obras:
- O Livro da Montaria, de D. João I;
- O Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela e o Leal Conselheiro, ambos da autoria de D. Duarte;
- O Livro da Virtuosa Benfeitoria, do infante D. Pedro.
Escrito entre os anos de 1415 e 1433, o “Livro da Montaria parece inscrever-se na tradição da literatura técnica. Trata-se de um tratado sobre a caça ao porco-montês, composto por iniciativa de D. João I, após consulta aos mais autorizados monteiros da corte». In João Gouveia Monteiro, Orientações da Cultura da corte na 1ª metade do século XV (A Literatura dos Príncipes de Avis, excerto), HALP 1998.
Continua
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