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Canção da Partida
[…]
quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queria levar…
Marujos, erguei o cofre pesado,
lançai-o ao mar
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta…
- A última, de antes do teu noivado.
[…]
Camilo Pessanha
A declaração de amor e a resposta
«Para escrever esta carta, confidencia Camilo que ‘meditou’ um ano, e viajou propositadamente até Setúbal, onde Ana e Alberto viviam com o pai, então colocado nessa cidade.
- ‘E acredita V. Exa. que para tanto fui de propósito a Setúbal, tendo meditado um ano?! Desde quando estive em Mangualde. Tenho na memória, vivíssima, a lembrança daquela noite, quando entrei no meu quarto para seguir na madrugada seguinte para Lamego. Embarquei no meu quarto como quem embarca em um navio. Uma efusão de despedidas muito amiga, desvelos que eu nunca poderia esquecer pelo seu contraste de doçura na minha vida desguarnecida de afectos, desconfortável e desamorável [...].Como eu quisera ter anteontem podido dizer toda asaudade agradecida desse momento. Frustrado, o meu íntimo poema delicadíssimo!’
Nesta singular missiva de amor, nem tudo são doces evocações. Falando da avó materna, Camilo confessa o (constante) receio da loucura, e teme que aquela ‘carta anormal’, cause à destinatária ‘numa terrível impressão de frio’.
NOTA: Como informa Alberto Osório de Castro, o ‘querido condiscípulo fraternal de Coimbra de 1889-1891’, ‘tivera de interromper o seu curso de Direito entre o 3º e 4º anos, por força de grave doença nervosa’, “Camilo Pessanha em Macau”, publicado primeiro na revista Atlântico, em 1942, e retomado nas Cartas, como apêndice. E é sabido que um dos irmãos, Manuel, endoideceu: conta-o Camilo em termos impressionantes numa carta de 1908 àquele seu amigo.
- ‘Minha avó materna morreu no hospital de Coimbra. V Exa. terá meditado o que é a escravatura da plebe, trabalhando até ao completo esgotamento de forças, instigados por vergastadas nos seus desfalecimentos, e levados de rastos quando já não podem suster-se de pé. Uma vez dizia-me um jornaleiro, velho e doente: «Um homem é como um animal: enquanto não está morto pode caminhar: é questão de lhe darem cacetada’».
E conclui assim, «o servo humilde», a declaração amorosa:
- "Vem daqui, Penso eu, a minha falta de alegria e este fenómeno de todas as minhas sensações terem sido antes pensamentos: de me sentir pensar e de nunca me esquecer de que o cérebro é um pedaço de massa cinzenta ensanguentada- Daqui esta carta anormal, que me tem levado horas a escrever [...] e que em V. Exa. deverá causar uma terrível impressão de frio. Porém eu tudo sacrifico, até as minhas esperanças, no desejo de não iludir V. Exa.”
Ana responde-lhe de Setúbal, em 20 de Outubro de 1893. Suspeito que sou como parente (com o desgosto de não ter chegado a conhecê-la), parece-me este um documento de tocante humanidade, pela intuição de que aquele amigo do irmão, no meio de tantas atribulações, era alguém, e merecia ajuda e amizade:
- ‘surpreendeu-me, bem viu, a sua declaração no caminho do castelo. Se eu estava tão longe dela! Não pude mesmo encontrar uma palavra para responder. E não podia, mesmo hoje. De viva voz creio que não saberia dizer nada. O meu espírito tem destes acanhamentos que eu não posso vencer. Fiquei triste por não lhe poder dizer alguma cousa; e estes quatro dias tenho sofrido com isso. Mas hoje que recebi a carta de V. Exa. posso já dizer-lhe tudo que sinto. [...] Impressiona-me, aflige-me o menor sofrimento das pessoas que sentem alguma cousa de verdade no meio desta comédia toda. Aflige-me principalmente quando esse sofrimento é causado por mim, ainda que involuntariamente’.
In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT