quinta-feira, 5 de abril de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. Leituras. «Um dia, inesperadamente, as portadas de madeira abriam-se, as janelas deixavam voar os cortinados brancos, com as correntes de ar, velhas apareciam a dar o espanador aos móveis, e uma figura de branco, ou de amarelo, ou de vermelho, que eram cores de fora, aparecia e desaparecia na agitação da limpeza…»



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«Raramente, chovia: e era então certo que o padre se irritaria contra o povo, no sermão, porque a chuva fora de época é um sinal da ira de Deus contra os homens. É verdade que os sermões eram ouvidos com espanto e terror, mas quase só pelas mulheres, porque os homens preferiam ficar lá fora, a conversar ou os que entravam mantinham o rosto impassível de quem tem a cabeça noutro lugar. As mulheres não deixariam, porém, de fixar a mensagem, e talvez a viessem a lembrar, de quando em quando, durante o ano, em alturas em que os homens as maltratassem, ou em que olhassem em excesso para as raparigas que vinham da serra para trabalhar no campo, e que dormiam sozinhas em arrecadações sórdidas.
Mas donde vinha a tentação não era tanto dessas mulheres, que se vestiam de roupa escura e remendada, ocultando as formas dos corpos, mas sim das senhoras que vinham da cidade, por razões quase sempre misteriosas, e que se instalavam em casas que até então tinham permanecido fechadas. Um dia, inesperadamente, as portadas de madeira abriam-se, as janelas deixavam voar os cortinados brancos, com as correntes de ar, velhas apareciam a dar o espanador aos móveis, e uma figura de branco, ou de amarelo, ou de vermelho, que eram cores de fora, aparecia e desaparecia na agitação da limpeza, dando ordens e assumindo o domínio das operações. Essas mulheres vinham com os pássaros, na altura em que as árvores começavam a dar flor; e vinham sozinhas, ou porque eram viúvas, ou porque os maridos tinham escolhido outros destinos, empurrando-as para esses exílios que, num tempo em que não havia divórcio, eram a única forma de resolver situações equívocas.
Nos dias de sol, punham cadeiras de baloiço debaixo dos alpendres onde um jardineiro já tinha cortado as buganvílias, e liam livros de capas cremes, dentro dos quais se adivinhavam destinos sublimes e amores impossíveis. A leitura tinha, assim, uma sugestão de pecado, sobretudo quando o vento lhes levantava a saia até meio da coxa, e elas não se mexiam para remediar a situação, como se a intriga as arrastasse para outro mundo que lhes fazia esquecer as conveniências deste. No entanto, diziam alguns, se elas faziam isso é porque sabiam bem que estavam a ser olhadas, de longe, e gostavam de provocar o desejo, oferecendo-se como presas que, no instante em que a arma está pronta, estendem ao agressor o escudo de um sorriso que desarma, impedindo o gesto predador do sexo.
Mas era de noite que a situação se tornava mais enigmática, quando as janelas deixavam entrever salões de luz acesa, numa casa que se sabia não ter outros habitantes além delas. Que poderia uma mulher sozinha fazer numa casa, e que luxo de ostentação obrigaria a que não tivesse ligada apenas a luz mínima de uma ou outra lâmpada, deixando ver os lustres de mil lâmpadas e o reflexo deles em grandes espelhos? Com o tempo, porém, as dificuldades começariam a aparecer quando essa iluminação feérica começou a ser reduzida; mas, nessa altura, a idade também já tinha feito com que o esplendor jovem dos seus corpos tivesse dado lugar a rugas flácidas e a peles que tremiam em alturas de irritação, trazendo à vista uma ruína que não era só física mas se estendia até à alma». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT