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No 657º aniversário da sua morte
«Foi por essa altura que, na liberdade viva dos seus dias, descobriu a Serra, que já tinha, no entanto, avistado anteriormente do paço ou das ruas da vila. Ficava sobre a igreja de S. Leonardo, engastada nos primeiros contrafortes da terra e era abundantemente arborizada por uma vegetação baixa mas densa. O terreno era áspero e rude, bom receptáculo de feras pelo agreste das matas e o côncavo das grutas, que existiam nas penhas. Os animais abundavam, pois havia abundância de águas e fertilidade de pastos. Os homens tinham arroteado aí algumas terras e cultivavam uma cevada rija e morena, lado a lado com árvores de fruta, em geral pereiras ou macieiras. Eram homens mais escuros do que os de Atouguia, tinham vindo do interior e tinha-lhes sido dado alvará, já em tempo de Sancho II, para arrotearem com animais as terras e fazerem nelas casais. A rainha Isabel, esposa de Dinis, tinha mandado fazer aí um pequeno retiro, onde se entregava à contemplação do mar, enquanto que o rei estanciava entre Leiria e Alcobaça, onde visitava procuradores, prelados e mesteirais, que mandavam as filhas, quando as tinham, servir-lhe vinho e figos nas baixelas mais ricas da casa. Agora, depois da morte de Dinis, Isabel estava praticamente recolhida nos paços de Santa-Clara, paços que ela própria tinha mandado construir, para uso exclusivo da família real, na margem nua do Mondego, que ficava em frente da cidade de Coimbra.
Corria, já em Castela, quando Afonso IV escreveu ao seu primo, no dia 14 de Janeiro de 1333, a fama de que na corte portuguesa se afirmava sofrer a infanta D. Branca de muitos e naturais defeitos, que a impediam do casamento, anulando assim o tratado, já que o matrimónio se adivinhava impossível, e absolvendo ainda o infante de Portugal do juramento esposal. Foi uma carta breve, cuidada, respeitosa, aquela que o homem da puridade, antigo prelado de Guimarães, anotou. As coisas tinham acalmado com o nascimento dum primeiro filho a Maria de Portugal em 1332, que morreu porém à nascença, e dum segundo, em 1333, que foi desde logo aclamado como o infante herdeiro do trono de Castela e Leão. Maria, talvez sensibilizada pelas recordações que tinha do irmão, insistiu teimosamente em que a criança se chamasse Pedro. Foram momentos de alegria para Afonso e Brites, tanto mais que em 1332 no meio dum esplendor que muito devia ao gosto imperial dos godos, o rei de Castela se tinha coroado, lado a lado com a esposa, na catedral de Burgos, em Maio. O arcebispo de Santiago, D. João de Lima, coroou com pública solenidade ambos os esposos e o povo veio com o seu concurso a aplaudir o rei e a rainha.
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A companhia do trono não pôde, contudo, resultar em união do tálamo. Maria de Portugal seguia Afonso de Castela como rainha coroada, mas Leonor de Gusmão levava-o atrás, mesmo já em Burgos, não porque fosse companheira por estado, mas sim porque era amiga por conformidade.
Afonso de Castela leu a carta de seu primo e apressou-se a responder. Eis a sua resposta:
- «Dom Afonso, por graça divina e vontade de Deus, rey de Castela, de Leão e Senhor de Viscaia recomenda-se a seu tio e genro, el Rey de Portugal e do Algarve. Em querer deixar de vos livrar da promessa que comigo contraíste em receber Dona Branca, filha do muito querido tio Pedro, por vossa filha, não posso deixar de vos avisar que o recato, o sossego e a bondade de coração vão melhor a uma mulher que o artifício, a fermosura e o temperamento. Por isso, a mim me parece que fareis bem por agora de vos calardes e de esperardes sem causa ou desejo de novidade. Pedis-me ainda conselho sobre o casamento que intenteis agora fazer entre vosso filho e a filha de João Manuel, fidalgo de Castela com quem tenho a vontade em pouco alterada pelos motivos que sabeis. Se o conselho que me pedis é o conselho que eu gostaria que me fosse dado, então longe estarieis vós de tal casamento. Desde que de tal mulher me vi quite, nunca disso me arrependi. Nenhuma saudade me tem custado a afastar-me dela. Por isso, vos redigo que por agora farieis bem em calar-vos, tanto mais que, sem pesar o digo, a promessa é, e a outros já o tenho ouvido, como uma dívida. Sois livre porém. Sobre esta verdade se construirá o seguro que, decerto, contribuirá para unir os nossos dois reinos, dando mais paz a esta Hespanha, agora tão ameaçada por um novo perigo: o africano».
Estávamos em princípios de Fevereiro de 1333 e o cerco posto pelo rei de Marrocos, Ali Boacem, à praça de Gibraltar parecia, de facto, difícil de suster. Toda a reconquista se fundou num mal-entendido: o de não poderem coexistir lado a lado cristãos e muçulmanos, ou, o que vem a dar no mesmo, muçulmanos e cristãos. Cangas de Onis ou Covadonga não são o sinal de nada, porque a Hespanha muçulmana é talvez mais autêntica do que a Hespanha visigótica.
Acultura árabe, radicada em torno da grande cidade de Córdova, permitiu o florescimento dessa cultura cantonalista, que é mais peninsular do que o espírito imperial e unitarista da monarquia visigótica. Só com os Almorávidas e os Almóadas se criará, do lado muçulmano, um espírito de fanatismo religioso, que é já, no entanto, uma resposta ao espírito da cruzada cristã. As Taifas, pequenas repúblicas independentes anteriores à vinda das duas dinastias berberes, são lugares de labor, de inteligência e de tolerância, onde se criou e desenvolveu um espírito múdejar, que é talvez o melhor espírito da tradição hispânica. Pode-se mesmo dizer, sem exagero, que o melhor que a Península fez, ao longo dos vários séculos em que a sua personalidade se afirmou, foi sempre dentro da lembrança desse espírito, onde se alicerçam afinal os melhores valores do nosso espírito:
- tolerância e capacidade de compreender e aceitar o outro nas suas diferenças e identidades.
A verdadeira Hespanha muçulmana, que é a primitiva, deu ao homem hispânico a certeza de que ele teria um destino extra-europeu, dando-lhe simultaneamente a confiança e a prudência necessária à realização dum tal destino. E isso que, justamente, de forma muito inteligente, os catalães perceberão ainda em pleno século XIII, quando postos em contacto com as grandes escolas de Valência ou de Alicante. O esplendor da bacia do Guadalquivir, a força dos contrafortes da Srra algarvia, as marinas catalãs de Alicante ou Múrcia constituem e constituirão sempre como que o arquétipo mais pujante e evoluído do homem hispânico.
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Por isso, a contra-reconquista que Ali Boacem tentou empreender em 1330 é perfeitamente inglória e insensata. Era uma tentativa, a última no entanto, e daí o seu interesse, de reconstituir não tanto aquilo que tinha sido a Hespanha muçulmana, porque essa continuava viva, como continua hoje, no coração mesmo da Península, mas o império ultra-autoritário dos Almóadas, para quem a Península nada mais era do que um entreposto militar de combate.
A primeira vitória desta contra-reconquista árabe deu-se no mês de Junho de 1333 quando Gibraltar caiu nas mãos de Ali Boacem, Sultão de Fez, que foi ajudado por Abem Melic, rei de Granada. Afonso XI desceu do minarete de Sevilha, mandado construir dois séculos antes pelo grande Almançor Iacub, reuniu as suas tropas, ladeou as marismas, atravessou o Guadalete e, depois de passar em Medina Sidónia, onde reforçou o seu exército, pôs cerco a Gibraltar.
Os abrasados calores desse Verão não ajudaram e acabou por firmar tréguas com ambos os reis árabes, o de Marrocos e o de Granada. Gibraltar era no entanto uma peça fundamental no jogo militar da Península, já que dominava o estreito que sewparava a Hespanha da África, constituindo desse modo uma fronteira natural importante.
Gibraltar era, no fundo, uma porta de passagem e da sua posse dependia afinal toda a sorte militar da Península. Com as tréguas concluídas e as pazes afinadas, Afonso de Castela regressou às vilas de Guadalajara e Segóvia onde, por muito ferverem os ardores do Sol, não fervem menos os ânimos». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.
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