Cortesia de montanhamagica e alternativa
«À medida que a civilização industrial e já terciária se desenvolve e vai abarcando nas suas malhas todos os povos e toda a população de todas as regiões, cada vez mais os homens se sentem angustiados por questões que parecem sobrelevar as suas possibilidades. Ter nas mãos o nosso próprio destino é a ambição suprema de hoje. Não foi assim em todas as épocas, porque muitas vezes se viveu conformado com a sua sorte, quando muito confiando em que um poder transcendente se compadecesse dos humanos. Mas desde que se inventou a ciência, com a matemática e a mecânica, depois todo o sistema do universo, sonhou-se que o homem se poderia tornar dono e senhor da natureza.
Poder-se-ia tratar cientificamente os fenómenos humanos, e dessa análise partir para construir um futuro à medida dos nossos anseios? À utopia sucederia a aplicação da ciência como salvação. Esta preocupação de uma acção imediata ergueu um dos primeiros obstáculos a uma investigação e construção teórica rigorosas. É que, na ânsia de transformarem o mundo para o adaptarem aos seus fins, e para resolverem ou pelo menos aquietarem as suas inquietações, os homens confundiram com frequência aquilo que é com aquilo que desejariam que fosse, transpuseram a realidade para o plano da utopia e perderam tanta vez a possibilidade de ver as coisas como elas são, implacavelmente. Situamo-nos na teia das relações sociais, e porque assim vivemos supomos que a sociedade é inteiramente transparente. Ilusão que obnubila tantas sociedades, e no entanto nenhuma outra é mais perigosa, o que nos é familiar é realmente oculto.
Cortesia de dn
Ao invés do que seria de supor, a reflexão metódica e científica sobre os problemas humanos é de data muito recente, se exceptuarmos certas contribuições, como a de Aristóteles. Na verdade, quase sempre os homens interpuseram entre o que são e a sociedade em que vivem um conjunto de mitos, construções em geral antropomorfizadas, cujo fio lógico são as genealogias. Esses mitos são crenças de base emocional, em que se acredita profundamente, cuja raiz afunda nas profundidades do eu e do inconsciente, comuns a toda uma comunidade. Por isso mesmo difíceis de pôr em causa. É em períodos de transformação social profunda que os homens começam a aperceber-se de que a tessitura das relações humanas não é transparente e, embora dada, abre feixes de problemas. Quer dizer, não é pelo facto de estarmos em cada momento integrados num sistema de relações com os outros que efectivamente temos consciência clara dessas relações.
Pelo contrário: pode dizer-se que o facto de estarmos no interior do sistema de relações sociais impede, ou pelo menos dificulta que nos apercebamos com nitidez da natureza e modalidades de tais relações.
É necessário, portanto, que as sociedades entrem em crise, que as civilizações sejam discutidas para que os homens consigam libertar-se do ponto de vista em que naturalmente estão colocados e que é um ponto de vista subjectivo, para serem levados a esforçar-se por se elevarem a um ponto de vista objectivo. Tais situações de crise vamos encontrá-las no mundo antigo, com, por exemplo, a guerra do Peloponeso. São então abalados os fundamentos da cidade grega; ora é o momento em que um historiador como Tucídides, um filósofo como Platão e no século seguinte Aristóteles, tentam inventariar a realidade social, compreendê-la como ela é, embora no caso de Platão visando a construção da cidade ideal, estável. Puseram-se assim os alicerces em que vai assentar o pensamento político e a concepção social da Europa nos séculos da modernidade, conquanto a preocupação pelo normativo erguesse algumas barreiras a uma análise mais penetrante.
Cortesia de quetzal
Ora, ao contrário do que seria de supor, se da ciência se conseguem aplicações de extrema eficácia pata a vida dos homens, é com uma condição: a de se afastar inicialmente de aplicações imediatas, passando primeiro pela teorização. Por isso decorreram séculos até que de novo surgissem pensadores a tentar um esforço objectivo, científico de apreender a vida social. Foi também quando uma nova crise, crise de cultura e sobretudo política e social, veio abalar o Antigo Regime de Estado absoluto e mercantilização, na França do século XVIII, e já na Inglaterra do XVII. Aqui com Hobbes e Locke. Ali com um jurista, Montesquieu, que na sua obra “De l'esprit des lois” pela primeira vez realiza uma investigação fundamentalmente sociológica.
Montesquieu, é certo, é um doutrinário, pretende a instauração de um regime que dê à França a estabilidade que o Antigo Regime já não pode assegurar; mas sabe separar os intuitos doutrinários, as possibilidades de aplicação, da análise científica. Ele define - conquista decisiva, a lei não como elemento da ordem jurídica, normativo emanado do poder, resultado da vontade dos homens, mas como uma relação necessária que resulta da própria natureza das coisas (coisas, entendidas não materialmente, mas como factos humanos, como entenderá também Durkheim). Foi todavia necessário que a máquina a vapor viesse transformar por completo os alicerces da vida dos homens, que se começasse a instalar a sociedade maquinista e altamente industrializada, lentamente, no século XIX, para que, enfrentando os homens situações difíceis, se não insuportáveis, ideólogos e doutrinários encetassem o diagnóstico do que se chamaria a questão social, e discutissem os problemas de fundo que com ela se levantavam, embora ainda não de um ponto de vista estritamente científico. É que se oscilava entre o que Gurvitch denominou as sociologias da ordem e as sociologias do progresso. Ou seja, entre os que pretendiam justificar a posição conformista e os que advogavam a mudança». In Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-946-6.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT